Ideologia de Gênero: a mentira da bancada evangélica para justificar sua homofobia

Carlos Henrique Carlos Henrique -

O discurso da vitória de Marcelo Crivella acendeu mais uma das inúmeras luzes de alerta sobre o avanço do fundamentalismo religioso no Brasil. Em meio a escândalos sobre falas antigas, em que classificou homossexuais como um mal terrível e frutos de abortos malsucedidos, o novo prefeito do Rio comemorou sua vitória com a oração do “Pai-nosso”. Claro que não poderia desapontar seus eleitores e bradou sob aplausos: “Não, não e não à legalização do aborto. Não e não à legalização das drogas. Não à ideologia de gênero às nossas crianças de seis anos!”. Como se decidir sobre essas questões fosse sequer atribuição do poder executivo municipal.

Uma reportagem da revista Veja, publicada na semana seguinte à eleição de Crivella, mostrou que a vitória do Bispo da universal é só o começo do plano de dominação daquela que é chamada por alguns de PMDB das igrejas evangélicas. Canais de TV, deputados, senadores, prefeitos e até representantes no judiciário! É assim que a Universal pretende dominar o maior país católico do mundo. E esse plano está indo muito bem, obrigado. A igreja, que pertence ao tio de Crivella, conseguiu a prefeitura da segunda maior cidade do país.

Convenhamos que a Universal não é tão intransigente como outras denominações que compõe a bancada evangélica no Congresso.  Talvez por isso sua penetração (epa!) nos Poderes tem se dado de maneira tão fácil. Isso não quer dizer que suas ideologias não sejam preocupantes, como no geral são as propostas pela bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia). O que todas têm em comum é um ódio irracional por homossexuais, que nem Freud explica, ou talvez explique até demais.

O mundo tem avançado, de maneira geral, quando o assunto é tolerância e aceitação de homossexuais. Diversos países já legalizaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e facilitam a adoção de crianças abandonadas por estes casais. No Brasil, apesar dos esforços contrários da bancada evangélica, desde 2011 era permitida a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e em 2013 o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou, por meio de uma portaria o casamento entre homossexuais em todos os cartórios do país. Os cartórios que se recusarem a realizar os casamentos podem, inclusive, ser punidos.

Essa decisão do CNJ foi o estopim que faltava para acirrar ainda mais a perseguição contra gays. Como estava ficando feio atacar casais gays e seu direito constitucional de se casarem, a bancada evangélica partiu para outras frentes, como o Estatuto da Família, criado exclusivamente para definir família como a união entre homem e mulher, e assim invalidar a decisão do CNJ, que corre a passos largos no congresso. E, em outra frente, inventaram a famosa “ideologia de gênero”, pela qual todos os cristãos estão lutando contra sem ao menos saber o que isso significa.

O primeiro ato neste grande circo, aconteceu durante a votação do PNE (Plano Nacional de Educação) que aprovado, com quase quatro anos de atraso, em 2014, com veto ao artigo que falava de combater discriminação. O texto vetado colocava como meta “a superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Sim, era apenas isso que estava no PNE: superação de desigualdades, com ênfase na promoção de igualdades, entre elas a de gênero e de orientação sexual. Sequer usaram a palavra “homossexual”. Quando falamos de gênero estamos falando, inclusive, das desigualdades entre homens e mulheres, mas o foco aqui são os gays!

Esse artigo foi suficiente para alguns líderes religiosos, cheios de má fé, e uma fúria descerebrada começassem uma nova inquisição, contra a fictícia ideologia de gênero. De acordo com esses servos do “Deus do amor”, os gays malvados que querem dominar o mundo, transformar todos em gays e colocar Madonna como rainha do universo, criaram uma ideologia que transformaria todas as crianças do mundo em mini-gays que sairiam por aí gritando “lacrou”, “berro” e “Viva a Lady Gaga!”. Acontece que na vida real a coisa é bem diferente do que este discurso de ódio gratuito tenta fazer você acreditar.

É preciso que fique claro que a tal ideologia de gênero só existe na cabeça dos crentes mais alienados. Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso sabe que tudo não passa de lorota, como pano de fundo para discurso homofóbico. Diversas pesquisas mostram que homossexualidade não pode ser ensinada ou “influenciada”, como estes líderes mal intencionados querem que você acredite. Hoje existe um consenso no meio científico que estabelece a orientação sexual como fruto de um mix de fatores, sendo eles genéticos, biológicos, sociais e ambientais. Isso vale tanto para a homossexualidade quanto para a heterossexualidade.

Portanto, assim como ninguém te ensinou a ser hetero, nenhum gay no mundo vai conseguir transformar seu filho em um ser purpurinado e seguidor de Santa Cher, apenas por falar de igualidade de gênero nas escolas. Tanto que isso sequer estava previsto no texto original do PNE, que dizia apenas ter como meta acabar com essas diferenças em razão de sexo ou orientação sexual. Mas o que podemos esperar de uma sociedade que vê com bons olhos a “Escola de princesas” que vai ensinar sua filha a ser submissa e obediente ao marido, por uma pequena quantia por mês? É óbivo que não é bom pro macho dominante falar de igualdade.

Num país, onde um gay morre a cada 28 horas, vítima de homofobia, era no mínimo decente, se acrescentar como metas para a educação o fim da perseguição de crianças em escolas por serem gays. Na escola é justamente onde a criança começa a se desenvolver socialmente, e é onde ela aprende a lidar com o diferente, e onde também reproduz os preconceitos aprendidos em casa. Ninguém vai ensinar sobre sexo para crianças, como Crivella disse. O objetivo era apenas ensinar respeito ao diferente.

As crianças, por não terem ainda adquirido alguns filtros sociais, como nós adultos deveríamos ter, acabam sendo cruéis. O que se pretendia era justamente ensinar essas crianças que ninguém merece apanhar ou ser tratado mal por ser gay. Retirar esse artigo do PNE, levou o Brasil a um enorme retrocesso no campo social, nos fazendo ser comparados com países fundamentalistas do nível do Irã e Arábia Saudita, onde ser gay é crime, e que mulheres devem ser submissas e obedientes.

Como muitos educadores não são fantoches destes líderes homofóbicos, questões como estas de bullying contra crianças gays, continuaram sendo trabalhados nas escolas, ignorando a ausência deste assunto no PNE, que é apenas um norteador e não um livro de regras engessado. Isso deixou a bancada evangélica ainda mais irada, afinal como alguns professores tinham a ousadia de enfrentar os bastiões da verdade e do amor que estavam decidindo o que devia ser feito no país?

Não bastava não terem nenhum fundamento científico para justificar o ódio pela tal ideologia de gênero. Aliás, não bastava sequer nem conseguirem provar a existência de tal ideologia, já que a ciência diz que ninguém se torna gay ou hétero, simplesmente nasce assim. A bancada evangélica decidiu então, que sua homofobia doentia precisava dar um passo a diante e o Senador Magno Malta, aquele exemplo de cristão, criou o projeto Escola sem partido.

O projeto, tinha como pretexto proteger as pobres crianças brasileiras da doutrinação comunista que tem sido feita há anos no país. Prova disso é o tamanho das bancadas do PSTU e do PC do B no Congresso, os comunistas dominaram o Brasil. O projeto em si é tão absurdo que até o Ministério Público Federal já se pronunciou contra, dizendo que é inconstitucional.

O ponto principal da lei é justamente o trecho em que diz que “O Poder Público não se imiscuirá (se intrometerá) na opção sexual (ninguém no mundo além desses fundamentalistas tratam orientação sexual como opção!) dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.”

Olha aí a danada da Ideologia de Gênero de novo. E, sim! Eles conseguiram enfiar ela num projeto de lei que tratava de doutrinação política em escolas. Querem proibir a aplicação de algo que eles sequer têm como provar a existência. Não vou repetir mais uma vez que a ideologia de gênero não existe, pois já está repetitivo. Mas repetitiva também, está a obsessão desses líderes religiosos pelo aparelho excretor alheio. Este tipo de movimentação política apenas alimenta o ódio e a homofobia. Não por acaso é comum ler manchetes mostrando jovens que apanharam ou foram perseguidos, e até mesmo mortos, por serem gays.

É absurdo que em pleno século XXI, tenhamos que combater pensamentos e preconceitos que parecem ter saído de um livro da Idade Média. Não existe ideologia de gênero, não existe uma conspiração global para transformar todas as crianças do mundo em gays e não existe motivo para não se falar de preconceito e discriminação na escola. Não podemos deixar que esta teocracia absurda seja implantada em nosso país que, pelo menos em teoria, continua sendo laico. É dever nosso combater esses fundamentalistas que querem dominar nosso país e tirar ainda mais proveito de uma população que já sofre e paga o pato por tanta coisa. Ao invés de combater a ideologia de gênero, precisamos combater a ideologia fundamentalista, que quer nos colocar sob seus cabrestos.

 

Bruno Rodrigues Ferreira é psicólogo e jornalista. Especialista em Educação e Tecnologia e Gestão em Saúde. Twitter: @ferreirarbruno

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