Como os ‘loucos anos 20’ podem nos ajudar a prever o pós-pandemia

Expressão "loucos anos 20", da original "roaring twenties", nasce na década de 1930 nos Estados Unidos

Folhapress Folhapress -
Paulista reabre para lazer aos domingos em caráter experimental, após ficar fechado por conta da pandemia. (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)

Felipe Maia, da Espanha – Parisienses tomam taças de vinho à mesa do bar sem maior preocupação. Em Berlim, a vida noturna recupera seu passo e dança.

Madri, esvaziada pelo verão, vê seus residentes fugirem para o litoral. Muitos hasteiam a bandeira da Espanha nas janelas de suas casas de verão no País Basco ou na Catalunha.

Poderia ser 1921, quando a Primeira Guerra Mundial e a pandemia da gripe de 1918 se assentavam no passado e abriam espaço para uma década marcada por ideais de progresso, hedonismo e criatividade. É 2021, porém, e Europa e Estados Unidos têm vivido a expectativa de uma nova década ainda com ressalvas, mas com esperanças renovadas por campanhas de vacinação, redução do número de casos graves de Covid-19 e fim de restrições como uso de máscaras em locais públicos. Serão esses os novos “loucos anos 20”?

Na parte inferior do mapa, a pandemia segue. Departamentos franceses no Caribe, Guadalupe e Martinica enfrentam a pior onda de Covid-19 até agora. Vinte anos de ingerência estadunidense estagna instituições no Afeganistão e o Talibã volta ao poder. Deu no New York Times há uma semana: segundo o Fórum de Segurança Pública nacional, um jovem brasileiro negro tem três vezes mais chances de ser morto pela polícia do que um jovem brasileiro branco.

Enquanto isso, a Câmara inquire ex-ministros em busca das vacinas que não chegaram e segue a esgrima entre os três poderes -como na história dos mosqueteiros, tem um quarto militar enxerido.

A pergunta correta, então, é outra. Quais serão esses os novos “loucos anos 20”?

A expressão “loucos anos 20”, da original “roaring twenties”, nasce na década de 1930 nos Estados Unidos e é título da principal exposição em cartaz no Museu Guggenheim de Bilbao, Espanha. Cerca de 300 objetos daquela época, entre telas, fotos, móveis, filmes e vestuário, estão dispostos pelo arrojado edifício assinado pelo arquiteto Frank Gehry.

Essa é a primeira grande exibição na instituição, uma das mais relevantes da arte moderna e contemporânea, desde o início da pandemia.

A abertura ocorreu no início de maio, na mesma semana em que deixou de valer o toque de recolher em solo espanhol -muitas cidades voltaram a adotá-lo e o abandonaram desde então, num esquema iô-iô. A medida, então, fora recebida por aglomerações festivas em ruas de várias cidades do país, noite adentro, com direito a gritos de “liberdade” e copos de cerveja entre os mais jovens.

“Não dá para entender os anos 20 sem entender os traumas da Primeira Guerra Mundial”, disse à reportagem Catherine Hug, galerista, historiadora da arte e uma das curadoras da exposição. Hug esteve mais de três anos envolvida no projeto e seu desafio, conta, foi retraçar a década entre a dor da guerra e da pandemia e os arroubos de um futuro promissor. E sem cair em lugares-comuns.

Foi algo como evitar uma reedição da festança desenfreada de “O Grande Gatsby”, livro do americano Scott Fitzgerald protagonizado por Leonardo DiCaprio no cinema. “O que tentamos fazer é ultrapassar o clichê da década, porque também houve revoluções em pequena escala, mudanças paradigmáticas em consumo e produção e diferentes sociedades começaram a se conectar, havia algo interdisciplinar nisso”,
comentou a especialista.

Esse conjunto de novidades em comportamento, estética e discurso é fundamental para o surgimento da atual noção de modernidade.

O direito ao voto para mulheres, a mecânica quântica, o automóvel particular, os clubes de dança são elementos de uma nova era que se contrapõe ao horror dos anos passados. Algo como quando o Renascimento sucedia a peste e encerrava a Idade Média.

Ainda que a relação de causa e consequência não dê a totalidade de ambos momentos históricos, tampouco se ignora a cisma causada por grandes eventos como esses. Há nessas rupturas também uma vontade latente, um devir de alegria no futuro que solapa a crise.

Sinal desse espírito na década de 1920 é não apenas o caráter multi-situado da produção artística de então, mas também seu espírito antecipador, “avant la lettre”. Nas paredes do Guggenheim, o Novo Objetivismo alemão e o Manifesto Dada -assinado quase exclusivamente por homens, vale dizer- celebram o traço certeiro, pontudo, para frente. A ficção científica “Metrópolis”, de Fritz Lang, divide espaço com “Ballet Mécanique”, de Fernand Léger, um dos primeiros filmes experimentais de que se tem notícia.

Cartazes da época revelam a transição da criação manual para o modelo fabril, gráfico. A fotografia começa a ganhar status de arte na inquietude de nomes como László Moholy-Nagy e suas imagens construtivistas. O artista húngaro foi um dos professores da Bauhaus, escola alemã que surge em 1919 entre a revolução russa e a nascente indústria cultural norte-americana. “Existia nessa época o imperativo de tornar a arte democrática”, disse a curadora.

Nome que influenciou Niemeyer, Le Corbusier ajuda a fundar o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna em 1928. O arquiteto franco-suíço, cujo trabalho também está exposto no museu, ecoa em outras gerações assim como a década de 1920 reverbera adiante -dos quadriculados de Mondrian à pop art, do pretinho básico de Coco Chanel, atendendo a mulher que surge no pós-guerra, à estética Twiggy, símbolo dos anos 1960.

Pouco diz tanto sobre a década de 1920 quanto a música. Muito porque nos processos de produção, distribuição e fruição da que seria mais popular entre elas, o jazz, linguagens e ícones daqueles anos se encontravam. Não por acaso os loucos anos também são conhecidos como “A Era do Jazz”.

Em notório avanço da tecnologia elétrica, a música se substancia como cultura de massa com as primeiras transmissões comerciais de rádio e a intensa produção de discos -mais de cem milhões por ano nos Estados Unidos somente na década de 1920. O jazz, pop e popular, compõe boa parte desses fonogramas e bandas embalam “flappers” e “garçonnes”, como eram chamadas as jovens eufóricas de Nova York e Paris, ao som de charleston, ragtime e swing.

“Tentamos criar algo vivo aqui, algo que não fosse nem nostálgico, nem museológico”, ressaltou Calixto Bieito, diretor de teatro que cuidou da cenografia da exposição no Guggenheim. Uma pequena pista de dança no museu convida o visitante a mergulhar no cenário das festas da época enquanto standards da banda de King Oliver tocam nos auto-falantes.

Se a curadoria da exposição fosse um pouco mais ousada, a trilha teria alguma faixa d’Os Oito Batutas, grupo que encantou a Europa em 1921 com maxixes, tangos brasileiros e choro. Choro e jazz não são a mesma coisa, mas compartilham elementos que floresceram na década de 1920 em suas principais figuras -Louis Armstrong e Pixinguinha, líder d’Os Oito Batutas.

Homens negros, ases no uso do improviso como ferramenta de composição e avançados na forma com que estruturaram seus conjuntos e obras -solistas de inigualável criatividade-, ambos fugiram aos cânones eurocêntricos ao fazer música. Não o fizeram porque refutavam a música europeia, mas porque se apropriaram da produção ocidental para fazer avançar a arte moderna que performavam.

Este modernismo, representado aqui pelo choro e pelo jazz, é o que difere a década de 1920 da mostra do Guggenheim da década de 1920 vivida em outras partes do globo.

Nas brechas do mundo ocidental e no continente latino-americano, os anos 1920 mais transformaram que seguiram a lógica de democracia liberal, cultura racionalizada e ideais progressistas -nutridas em parte pelo afluxo da empresa neo-colonizadora.

Aquela década no Brasil assistiu à reconfiguração do tecido social com imigrantes e a primeira geração adulta de homens e mulheres negras nascidos livres, o embate entre padrões europeizados e as bases da política da boa vizinhança dos Estados Unidos, as festas na rua e as músicas urbanas alçando-se a símbolos nacionais.
Vemos o sucesso d’Os Oito Batutas, do samba amaxixado, o homérico carnaval de 1919 lavando o que restava daquela outra mortal pandemia, a da gripe. Surgem blocos e troças hoje centenários, como o Cordão da Bola Preta no Rio e o Cariri acelerando o frevo em Pernambuco.

Em 1928, um ano antes da criação da francesa Révue du Cinema, é fundada a revista brasileira Cinearte. A Semana de Arte de 22 em São Paulo incorpora o espírito da década como plataforma de uma classe artística que, pela primeira vez, formaliza um olhar coletivo para o Brasil.

A perspectiva dessa outra modernidade não só contribui na compreensão do que era o mundo há cem anos, como também permite esboçar quais serão esses novos loucos anos que chegam.

Para a década de 2020, morte por falta de vacinas é um problema que não deve afetar Europa e Estados Unidos, ao contrário de América Latina, África e sudeste asiático. E planos de recuperação econômica devem fazer efeito nos principais blocos econômicos do mundo.

O parlamento alemão aprovou em dezembro último um investimento de € 2 bilhões, ou cerca de R$ 12 bilhões, para aliviar os efeitos da pandemia no setor cultural do país. Para efeito de comparação, a Lei Aldir Blanc prevê um aporte de R$ 3 bilhões na cultura brasileira.

Há, sim, esperança de uma euforia global. É impossível não imaginar benefícios da rede científica que se formou para, em pouco menos de um ano, desenvolver vacinas contra o novo coronavírus.

O trabalho remoto talvez acelere mudanças nas estruturas das cidades. Na moda, a ascensão de tecidos inteligentes perde em importância apenas para a busca por cadeias produtivas ecológicas. Os NFTs, ainda em estágio embrionário e questionável, sugerem novos rumos para o mercado da arte. Plataformas de áudio e vídeo deixam de ser vitrines para se tornarem espaços de criação coletiva, desterritorializada, de memes no TikTok a ferramentas de manipulação sofisticadas.

No Brasil, por difícil que seja vislumbrar algo, há também entusiasmo com a década pós-vírus. As artes visuais se decolonizam pela pintura, a mais antiga forma de expressão, nas mãos de jovens artistas como Maxwell Alexandre ou Senegambia.

O funk deve continuar como mais popular experimento musical do país, um idioma que se embrenha em outros gêneros, subverte sons e reinventa modos de produção. A canção autoral tem novo fôlego, e exemplares são a cantora Jadsa ou a música de câmara popular do duo Gisbranco -ambos com dois excelentes lançamentos em 2021. A música latino-americana, por sinal, nunca antes foi tão popular no mundo.

E em países como Chile e Argentina, novas constituições e lei que ratifica direitos sobre aborto legal apontam para um futuro.

A energia represada pela crise é potencial de movimentação nos “loucos anos 20”, mas é inútil fazer um desenho pretensioso sobre esse futuro. Este exercício de observação só permite ver que não haverá nada de retilíneo na década que vem no Brasil, ao contrário do frisson ordenado do Ocidente. Do desmonte do Ministério da Cultura às inestimáveis vidas levadas pela pandemia, os traumas serão menos impeditivos que integrantes das práticas culturais brasileiras – seja como memória ou como negação.

Nos anos 1920, o choro deu ao mundo Pixinguinha e brincar carnaval entrou para a história. A década de 2020 será de baile sobre escombros, e poetas como Carlos Drummond e Mano Brown já escreveram que desse chão nascem flores.

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