Feridas seguem abertas cinco anos após tragédia da Chapecoense
Em campo, a Chapecoense já está rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro
Nos últimos cinco anos, o dia 28 de novembro faz Valdécia Borges de Morais Paiva revisitar a história que mais quer esquecer. É quando as filhas Gabriela, 10, e Lívia, 8, perguntam por que o avião que levava o pai delas, o volante Gil, caiu.
Val, como é chamada, suspira na tentativa de conter as lágrimas. “Dói muito porque precisamos seguir cheias de traumas, dores e incertezas”, afirma.
Gil foi uma das 71 vítimas da queda do voo 2933 da LaMia, nos arredores de Medellín, na Colômbia, em 2016.
Até hoje, ninguém foi preso pela sucessão de erros que culminou na tragédia após pane seca. As famílias também não receberam o seguro da aeronave.
A AON, corretora da apólice, responde não ser sua atribuição pagar a apólice. A Tokio Marine Kiln, principal resseguradora, diz que a empresa aérea não poderia voar para a Colômbia e, por isso, o seguro se tornou inválido.
“A sensação de injustiça grita dentro de mim. Passaram-se cinco anos e a gente não tem respostas nem punição dos responsáveis. Eu sei o tamanho da dor, o tamanho da revolta, e me sinto impotente para encontrar essas respostas, de responsabilizar os culpados e impedir que continuem a fazer irresponsabilidades com outras vidas”, lamenta Bárbara Calazans Monteiro, viúva do meia Ananias.
A Chapecoense viajava para Medellín, no melhor momento de sua história, para enfrentar o Atlético Nacional (COL), pela partida de ida da final da Copa Sul-Americana de 2016. Por iniciativa do time colombiano, apesar da resistência inicial da Conmebol, os brasileiros foram proclamados campeões.
Letícia Padilha, mulher do goleiro Danilo, um dos destaques da equipe, recorda-se com detalhes a semana que antecedeu à queda do avião.
Já Carolina Paschoalon, filha do jornalista e narrador esportivo Devair Paschoalon, conhecido como Deva Pascovicci, desistiu de tentar compreender a perda e se apega às lembranças.
Graduada em jornalismo, ela fez em seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) a biografia do pai, que narraria aquela decisão para o canal Fox Sports.
Entre relatos colhidos pela Folha, é perceptível como a tragédia criou feridas, ainda abertas, e trouxe, além do luto, a sensação de injustiça.
Há uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) instalada desde novembro de 2019 no Senado, com o propósito de apurar a situação dos familiares e identificar os motivos pelos quais não receberam a indenização. Ela ficou paralisada desde o início da pandemia, para ser retomada somente neste final de ano.
“Esse luto nunca vai passar. Chegam essas datas, fico assim, horrível, triste, muito mal. Faço de tudo para não cair em depressão. Guardo isso para mim. Tento contornar para não ficar triste, mas na verdade tudo o que fiz foi para blindar minha filha [Nina, de 9 anos] naquele primeiro momento. Hoje, ela sabe que o pai dela morreu. Mas na época, eu disse que ele tinha virado estrelinha e ia demorar para voltar. Ela chorou e ainda chora de saudades do pai. E a vida se tornou isso. Tentar contornar e ser feliz”, lamenta Susi Ribas, viúva do zagueiro Willian Thiego.
Os familiares das vítimas têm tentado ir adiante. Susi voltou para sua cidade, Porto Alegre, e criou uma marca de óculos escuros que leva o seu nome. Val se formou em direito.
“Vou usar a carreira para ajudar pessoas, não só as que passaram por dores semelhantes à minha, porque não desejo para ninguém, mas quero trazer consolo para quem é lesada diariamente e, de certa forma, não tem acesso à Justiça”, afirma a advogada.
“O processo de seguir adiante é muito complexo porque não morreu só o Ananias. Morreu um pai, um esposo, uma família, morreram sonhos e planos. É um processo de reconstrução muito complexo, muito lento. Venho passo a passo tentando resgatar muita coisa dentro de mim. A gente segue a vida porque ela não para para você sanar suas dores. Mas ainda hoje não encontrei um novo sentido de vida”, afirma Bárbara.
Na casa da família Paschoalon, Rosana, a viúva de Deva, e suas filhas, Carolina e Mariana, se reúnem para uma sessão de recordações das histórias do narrador. Figura carismática e alegre, Deva era exímio contador de histórias.
“A gente sempre acha que, com o tempo, essa dor passará, mas ela só aumenta. Nós nos apegamos muito às memórias com meu pai, seja pelos vídeos, nos encontros com os familiares que relembram da trajetória dele”, recorda Carolina.
A alegria do elenco e da comissão técnica pelo desempenho daquele time em campo é o que ameniza o sofrimento de Letícia. O seu marido, Danilo, era um dos grandes nomes da Chapecoense. Nas oitavas de final da Sul-Americana, em setembro de 2016, o goleiro defendeu quatro das oito cobranças de pênaltis do Independiente (ARG)
“Apesar de tudo o que aconteceu, a lembrança é da felicidade do Danilo e dos seus amigos. Estavam se realizando profissionalmente, foi histórico. Todos em seu auge, com sonhos e planos. Fica a gratidão de ter convivido com ele. Essa é a lembrança boa que quero carregar, mesmo que venham os pensamentos de tristeza”, conta Letícia.
No próximo mês, haverá uma audiência em Londres para definir o andamento da causa contra a AON, a Tokio Marine e as demais resseguradoras. Em Miami, nos Estados Unidos, a Justiça deu procedência à reclamação dos familiares e determinou o valor de cerca de R$ 4,8 bilhões como indenização. As empresas de seguro, no entanto, conseguiram barrar o andamento do processo com uma decisão no Reino Unido.
As famílias dos jogadores mortos receberam os seguros obrigatórios da CBF e da Chapecoense. No total, foram 36 salários do atleta, mas apenas o que está na carteira de trabalho, não o direito de imagem.
O presidente da Chapecoense, Gilson Sbeghen, disse à Folha que parte dos problemas financeiros atuais da agremiação se deve à busca por acordos trabalhistas com as famílias das vítimas. O débito total do clube, hoje em dia, está em cerca de R$ 120 milhões. O dirigente afirmou que o clube deseja encerrar o assunto com todas as famílias.
No mês passado, Susi Ribas teve uma decisão favorável de R$ 14 milhões. Cabe recurso. Magoada com a Chapecoense -afirma ter tentado um acordo várias vezes-, ela é uma das viúvas que não pretendem ir a um evento na Arena Condá na segunda-feira (29), para lembrar os cinco anos da tragédia.
“Há uma mágoa. Eu abri mão de mais de 50% do valor da minha causa e com parcelamento em mais de 10 anos. Os diretores do clube quiseram reduzir ainda mais, como se fosse uma morta de fome. Agora não tem mais acordo”, desabafa Susi.
Em campo, a Chapecoense já está rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro.