Vítima da Kiss conta que se despediu da família e pediu perdão enquanto caía em meio a incêndio

Tragédia em Santa Maria (RS) completa nove anos em janeiro do próximo ano

Folhapress Folhapress -
Santa Maria (RS) – Um ano do incêncio na Boate Kiss durante show na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Entrada da boate (Wilson Dias/Agência Brasil/Arquivo)

Fernanda Canofre, do RS – Em meio ao empurra-empurra e gritos de pessoas que tentavam deixar a boate Kiss, durante o incêndio que causou uma das maiores tragédias do país, com 242 mortos, Delvani Brondani Rosso, 29, disse que chegou um momento em que pensou que não conseguiria sair, começou a inalar a fumaça e sentiu os joelhos ficarem fracos.

“Quando eu fui caindo, eu fui me despedindo da minha família, dos meus amigos, pedindo perdão por alguma coisa que eu tivesse feito. Eu caí no chão, estava sentindo me queimar e eu fui me debruçando, colocando as mãos no rosto e desmaiei”, contou ele, depois de uma pausa no relato pela emoção.

O relato do jovem foi prestado ao juiz Orlando Faccini Neto, no júri do caso, que ocorre em Porto Alegre, neste domingo (5), quinto dia do julgamento.

Ele foi à Kiss com o irmão, Jovani, e outros cinco amigos na noite da festa. Uma foto de todos eles reunidos, tirada poucos minutos antes da confusão que seguiu o incêndio, mostra os jovens felizes, com copos de bebidas. Três deles morreram.

No relato, Delvani contou que o irmão conseguiu sair da boate e ajudou a puxar outras pessoas que seguiam dentro da boate. Jovani relatou a ele que seguranças haviam mantido as portas fechadas no início, pensando se tratar de uma briga, e que ele teria ajudado a chutá-la para que fosse aberta de uma vez.

“Ele me contou que tirou a camisa, fez um filtro, atou e entrava rastejando, por baixo da fumaça, e puxava as pessoas. Ele me contou que os homens ele puxava pelo cinto e as meninas ele puxava pelos cabelos, porque se ele pegasse por um braço, ele tirava a pele das pessoas. Foi o jeito que ele achou para puxar sem arrancar a pele de ninguém. Eu fui uma das pessoas que ele puxou”, relatou.

Delvani acordou já na calçada, do lado de fora, e conta que seu corpo estava em estado de choque, os braços retorcidos e que gritava de dor, pedindo socorro, quando se aproximaram pessoas vestidas de branco para atendê-lo.

“Se eu já estava achando que ia morrer, quando eles me levantaram, a dor que eu senti foi…não tem descrição. Eles me levantaram e foram me arrastando até a ambulância. Eu lembro que cada vez que eu gritava parecia que enterravam uma faca na minha garganta. Era uma dor só, não tinha uma dor na queimadura dos braços ou das costas. Quando eles me arrastaram até ambulância, tinha uma menina na maca. Eu lembro que um deles subiu, aferiu os batimentos cardíacos dela e disse: essa não tem mais o que fazer. Me colocaram no lugar dela”, relatou ele.

No hospital, para onde foi levado, ele via pessoas feridas e diz que lembra de ver cortarem sua camisa, que estava colada na sua pele e precisou de auxílio de pinça. Em um momento, no júri, Delvani tirou a camisa para que os jurados vissem as marcas de queimadura que cobrem hoje parte de seus braços e suas costas.

Os ferimentos que ele sofreu na tragédia fizeram com que ficasse um mês em coma, na UTI, mais de dois meses internado, precisando de fisioterapia para reaprender a andar e falar. Ele teve três paradas cardiorrespiratórias e precisou de traqueostomia para respirar. Ele precisou ser transferido a Porto Alegre.

“Eu era um prisioneiro do meu corpo, eu só conseguia pensar e só, tentar entender tudo que estava acontecendo comigo, o porquê de tanta dor, tanto sofrimento. Cheio de sonda, de aparelhos, imóvel. Só conseguia olhar, não conseguia engolir saliva, nada”.

O jovem contou ainda como recebeu a notícia de que três amigos haviam morrido em um incêndio que aconteceu na boate, pelo irmão.

“Eu olhava para ele e a única coisa que acontecia eram escorrer lágrimas dos meus olhos, eu não podia falar, eu não podia me expressar. Eu queria, naquele momento, explodir e terminar com tudo. Mas nem isso podia. Demorou muito tempo para que eu conseguisse digerir tudo isso, tanta dor, tanto sofrimento”, disse.

Ainda de acordo com o relato que ouviu de Jovani, ele disse que os Bombeiros ajudaram com mangueiras no local, mas que em um momento, quando o irmãoviu uma pessoa mais pesada tendo convulsões, pediu ajuda a um deles e esse não queria entrar no local. O irmão de Delvani, então, teria chacoalhado o bombeiro, os dois entraram e retiraram a pessoa.

Hoje, o jovem que trabalha com próteses dentárias, diz que sente um pouco mais o sol na pele, e precisa estar sempre ativo, praticando exercícios, caso contrário sente problemas como acúmulo de pigarro.

O relato de Delvani foi o que levou mais familiares a deixarem a plateia do salão do júri, onde acompanham o julgamento, pela emoção.

Quatro réus são acusados por homicídio e tentativa de homicídio simples com dolo eventual — Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios-proprietários, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente de palco e quem comprou o artefato pirotécnico usado).

O caso foi desaforado de Santa Maria a Porto Alegre a pedido de algumas defesas, que questionaram se a cidade poderia garantir júri imparcial.

Rosmeri Biscaíno, a mãe de Cássio, um dos três amigos de Delvani que morreram, foi uma das familiares a deixar o salão. O outro filho dela, Renan, sobreviveu à tragédia. Ela vestia uma camiseta com dizeres nas costas: “O sistema envenena. A corrupção mata. A impunidade enlouquece. 27.010.2013”.

Maria Aparecida Neves, 63, mãe de Augusto, foi outra mãe que deixou o local.

“Eu botei a mão na boca e saí para não gritar. Se nos descontrolarmos é motivo para nos tirar daqui e ou anular o júri”, disse ela à Folha. “Me deu vontade de chegar e gritar: viu o que fizeram com os nossos filhos?”.

O quinto dia de júri teve uma suspensão depois do depoimento do jovem para que os jurados pudessem descansar e atendendo a um pedido de alguns deles para acompanhar a partida entre Corinthians e Grêmio.

Ainda neste domingo, mais uma vítima foi ouvida, Doralina Peres, segurança na Kiss, chamada pela defesa de Spohr. Como não tem de prestar compromisso de dizer a verdade, as vítimas não são consideradas, tecnicamente, testemunhas.

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