Tentei salvar meu pai, meus cães e minha tese de doutorado em Petrópolis

"Vimos a água chegando cada vez mais alto. De lá, sentada no chão, encharcada e com frio, escrevi nas minhas redes sociais: perdemos tudo, tudo", contou.

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O forte relato de cientista que salvou pai, cachorros e viu chuva levar tudo em Petrópolis (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress)

(FOLHAPRESS) – A astrônoma Geisa Ponte, 36, visitava o pai quando a chuva que abalou Petrópolis chegou na casa da família na última terça (15).

Em cerca de vinte minutos, a água já passava de um metro. Foi o tempo que ela teve para tirar o pai e os cachorros de casa -e de correr para o alto de uma escada no vizinho da frente.

Não houve nenhum tipo de alerta oficial sobre a chuva forte e o risco de enchente. A família de Ponte perdeu tudo -com exceção da casa, que segue em pé (ainda que sem um dos muros laterais).

Na correria, ela tinha uma preocupação extra: salvar também a tese de doutorado em astrofísica em andamento na USP.

Eu tinha acabado de tirar minhas roupas do varal. Lavei tudo porque as roupas ficaram dois anos guardadas dentro do armário -o tempo em que fiquei em São Paulo sem conseguir visitar meu pai em Petrópolis por causa da pandemia. No final do ano passado, consegui vir para cá e fui ficando na casa dele, já que estou trabalhando de casa. Ainda bem que estava aqui.

Naquela terça à noite, eu estava no meu quarto onde cresci, dobrando as roupas -que estavam cheirosinhas-, quando meu irmão me mandou uma mensagem. Ele também mora em Petrópolis e disse que tinha chovido muito forte na casa dele. Estava preocupado.

A casa da minha família fica numa região baixa de um morro e perto de um rio, então chuva forte sempre foi motivo de alerta. Mas em 40 anos, desde que meu pai [76 anos] construiu a casa, nada disso tinha acontecido.

Resolvi me prevenir. Se entrar água em casa, pensei, é melhor que as coisas estejam em lugares altos. Coloquei toda a minha roupa limpa, que eu estava dobrando, em cima da minha escrivaninha. Não vai chegar até essa altura, pensei.

Para cima do guarda-roupa foi o meu ventilador, que tenho desde que eu era criança. É um ventilador de metal, tem uns trinta anos, bem retrô, do qual tinha maior ciúmes. Parece estranho falar assim de um ventilador, mas eu gostava muito dele. Para a mochila foram documentos, remédios e o computador de trabalho e estudo.

No computador está minha pesquisa de doutorado em andamento no Departamento de Astronomia do IAG-USP -e todos os programas que utilizo. Tudo configurado para o meu trabalho, que tem foco em estrelas de tipo solar.

Recentemente, tenho analisado a composição química dessas estrelas por meio de dados de espectroscopia [estudo da interação entre luz e matéria]. É um trabalho bastante intenso, que faço com bolsa da Capes [agência ligada ao MEC].

Quando vi a água entrando na casa, disse para o meu pai que precisávamos sair. Ele foi muito resitente e chegamos a discutir. Em mais ou menos vinte minutos a água já passava de um metro de altura. Os vizinhos do outro lado da rua começaram a gritar desesperados que tínhamos de sair.

Foi o tempo de pegar meu pai e seis cachorros -uma eu não consegui levar comigo– e de subir em uma escadaria de acesso ao morro que fica na frente da casa, de onde vimos a água na nossa casa chegando cada vez mais alto. De lá, sentada no chão, encharcada e com frio, escrevi nas minhas redes sociais: “perdemos tudo, tudo.”

Na escada, meu pai só falava na cachorra, a Cacau, que ficou para trás. E chorava muito. Depois de um tempo, alguém nos disse que tinha a visto em cima de um tronco, que talvez fosse ela, algo assim, que ela poderia estar viva. De fato, ela sobreviveu. Mas está muito traumatizada.

É difícil imaginar que a fuga de uma casa que está enchendo de água da chuva envolve esse tipo de coisa: convencer um pai idoso a deixar tudo para trás, levar com você sete cachorros. E as coisas acontecem muito rápido.

A correnteza tinha muita força e a gente não sabia o que havia naquela água. A qualquer momento você pode ser atingido por um sofá, um tronco, um muro. O nosso muro, que faz divisa com a casa vizinha, caiu com a força da água.

Na correria da saída de casa, cheguei a pensar que iria morrer. Meu pé prendeu no portão de casa que havia desabado no chão virando uma armadilha e eu não conseguia me soltar. Eu estava carregando os cachorros, alguns deles sem coleira. Não sei exatamente como consegui correr.

Depois pensei: se meu irmão conseguiu me avisar da chuva forte que se aproximava, por que o poder público não fez a mesma coisa? Não houve nenhum alerta, nenhuma sirene, nada.

Não há nenhum tipo de preparo ou de orientação sobre como a população deve agir em caso de enchente. E se meu pai estivesse sozinho em casa com os cachorros?

Quando a chuva parou, a água ainda levou umas duas horas para baixar. A casa do meu pai tem bastante jardim, mas é como se a terra não desse conta de absorver tanta água e lama. Entramos em casa sem acreditar no que estávamos vendo. Tínhamos perdido tudo.

Toda a minha roupa recentemente lavada -que eu estava dobrando- virou um bloco enlameado. E meu armário, aquele no qual protegi meu ventilador na parte de cima, desabou completamente por causa da água. Virou um papel.

Perdi também minha coleção de lápis de cor de aquarela, da minha infância, que tinha planejado levar para São Paulo, onde passo a maior parte do tempo por causa do doutorado, para voltar a pintar. Os lápis literalmente se derreteram com a água.

Tinha taco que se soltou do piso da sala dentro do vaso sanitário. Perdemos sofá, fogão, a TV que eu tinha acabado de dar para o meu pai, financiada em doze parcelas. Ele adora assistir TV.

Naquela noite, dormimos exaustos em cima dos colchões encharcados. E, desde então, estamos trabalhando para limpar a casa. Temos recebido a visita de muitos voluntários, que trazem cesta básica, produtos de higiene, água potável e marmitas -o que é bem importante porque, sem fogão, não dá para fazer e nem esquentar comida.

Tem gente que passa aqui todas as manhãs com café. Gente que nunca vi e nem sei o nome. Mas nunca veio ninguém do poder público.

Tenho sentido muito enjoo e há temor de leptospirose, um risco em caso de enchente. Também não consegui tomar vacina antitetânica, então estou acompanhando eventuais sintomas enquanto limpo os estragos na casa do meu pai.

Eu sou cientista e sei que essa situação toda só tende a se agravar. Precisamos ter políticas públicas, mas sei que isso não vai acontecer. O que posso fazer, então, é tentar tirar meu pai da casa dele e colocá-lo em um lugar mais seguro.

Ainda não sei quando voltarei para São Paulo e para a minha tese de doutorado. Eu tenho mais de 200 horas de experiência em astrofísica observacional em telescópios, meu marido, que também é astrônomo, está prestes a viajar para um congresso internacional nos EUA.

E estamos aqui limpando a casa do meu pai depois de uma enchente. Tenho muito orgulho da minha origem humilde, das minhas raízes e de onde vim. E ainda assim não consigo parar de pensar: como é difícil viver no Brasil.

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