Portugal dificulta acesso a nacionalidade para descendentes de judeus sefarditas

Modificação acontece por meio de um novo decreto que regulamenta a aplicação da lei de nacionalidades

Folhapress Folhapress -

GIULIANA MIRANDA
LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Portugal vai dificultar o acesso à nacionalidade lusa para descendentes de judeus sefarditas expulsos da Península Ibérica durante a Inquisição. Agora será obrigatório comprovar vínculos efetivos com o país.

A mudança acontece por meio de um novo decreto que regulamenta a aplicação da lei de nacionalidades.

“O governo regulamentou a lei, introduzindo mecanismos que impedissem que uma disposição generosa e justa pudesse ser pervertida”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, em entrevista à AIEP (Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal) na manhã desta quarta-feira (16).

O chefe da diplomacia portuguesa ressaltou que a lei se inscreve em uma lógica de reparação histórica contra “o erro que foi a expulsão dos judeus de Portugal no fim do século 15”, mas defendeu a exigência de requisitos mais restritivos do que aqueles atualmente em vigor. “Convém que todas as pessoas que tenham a nacionalidade portuguesa a tenham porque também têm um vínculo contemporâneo a Portugal. E que tenham elas próprias um vínculo a Portugal, não apenas os seus tetravós”, completou.

O anúncio acontece após a polêmica concessão de nacionalidade portuguesa ao oligarca russo Roman Abramovich, dono do Chelsea e figura próxima ao presidente Vladimir Putin, por meio do mecanismo.

As autoridades lusas já abriram ao menos duas investigações para averiguar possíveis irregularidades no processo de naturalização do empresário, concluído em 30 de abril de 2021, mas que só veio a público em dezembro do ano passado. A lista definitiva de mudanças ainda não foi divulgada.

Embora as novas regras tenham sido aprovadas no Conselho de Ministros em fevereiro e promulgadas pelo Presidente da República em 9 de março, elas ainda não foram publicadas no Diário da República.

De acordo com reportagem do jornal Público, Portugal passará a exigir documentos adicionais que comprovem um vínculo mensurável com o país. “A herança de um imóvel em território português ou a comprovação de visitas a Portugal ao longo da vida” seriam algumas das medidas adicionais.

Segundo o ministro Santos Silva, a medida não terá efeito retroativo e, portanto, não altera a situação daqueles que já obtiveram o passaporte português por meio desta via. Caso estivessem em vigor, as regras teriam impedido a concessão de nacionalidade portuguesa a Abramovich.

Portugal já atribuiu a cidadania a 56.685 descendentes de judeus sefarditas entre 2015 e 2021. Há milhares de brasileiros entre os beneficiados, mas o órgão do governo responsável pelo tema ainda não divulgou os dados mais recentes distribuídos por nacionalidade.

Além da documentação adicional, o país manterá a exigência de um certificado que ateste a condição de descendente de judeu sefardita expulso do país durante a Inquisição. O registro, aliás, está no centro do debate no caso da concessão de cidadania a Abramovich e de outros casos sob investigação judicial.

O certificado é lavrado após análise da árvore genealógica dos candidatos. Até a semana passada, o documento era emitido por duas entidades: a CIP (Comunidade Israelita do Porto) e a CIL (Comunidade Israelita de Lisboa). Líder da comunidade do Porto e responsável pelas certificações da maior parte dos processos do país, o rabino Daniel Litvak foi preso pela Polícia Judiciária portuguesa na última sexta-feira (11), no âmbito das investigações de irregularidades, incluindo o caso do oligarca russo.

Newsletter China, terra do meio Receba no seu email os grandes temas da China explicados e contextualizados; exclusiva para assinantes. * Detido no aeroporto quando se preparava para embarcar para Israel, Litvak foi liberado horas depois, mas com a obrigação de se apresentar às autoridades policiais três vezes por semana. O rabino também teve os passaportes (israelense e argentino) apreendidos. O religioso foi indiciado por diversos crimes: corrupção, associação criminosa, falsificação de documentos e lavagem de dinheiro.

A polícia também suspeita que Litvak tenha ajudado a desviar parte dos 35 milhões de euros que a CIP (Comunidade Israelita do Porto) recebeu como doações desde que a lei entrou em vigor, em 2015.

Em nota, a CIP negou as acusações e atacou as investigações conduzidas pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária, que seriam baseadas “fundamentalmente em denúncias anônimas inverossímeis”.

A entidade diz que membros de sua direção foram alvos de buscas por contatos que, afirma ela, nunca tiveram com cartórios, além de “peculatos tecnicamente impossíveis de realizar nesta organização”.

Em um movimento surpreendente, a organização também afirmou que não irá mais prestar o serviço de certificação de ascendência sefardita. Uma vez que a CIP era responsável pela emissão da maioria dos documentos do país, o movimento pode significar atrasos adicionais no processo de naturalização.

Tentativas de alterar as regras para a nacionalidade portuguesa para os descendentes de judeus sefarditas são um desejo antigo de parte do governo do premiê António Costa (Partido Socialista).

Em 2020, uma proposta encabeçada pela deputada Constança Urbano de Sousa, então vice-presidente da bancada parlamentar do Partido Socialista, aumentava as exigências para os postulantes ao benefício.

Uma das medidas era a exigência de residir em Portugal por ao menos dois anos. Houve forte resistência entre as comunidades judaicas e inclusive entre figuras do Partido Socialista, e a proposta foi reprovada.

“Na ocasião, o ministro dos Negócios Estrangeiros comunicou à Assembleia da República todas as informações de que dispunha e que indicavam que a lei, generosa e justa, estava a ser pervertida, permitindo um risco de mercantilização da nacionalidade portuguesa”, afirmou Santos Silva.

À época, embora os deputados não tenham aprovado uma alteração na lei, deixaram aberta a possibilidade de mudanças em sua regulamentação. Foi o que o governo fez agora.

Na vizinha Espanha, que também expulsou judeus durante a Inquisição, houve da mesma forma um programa de concessão de nacionalidades aos descendentes das vítimas, mas ele foi encerrado em 2019.

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