Meninos escravizados em fazenda nazista nos anos 1930 em SP são tema de livro
Material conta história dos garotos, com uma porção de detalhes assustadores
(FOLHAPRESS) – O mito do Brasil como uma sociedade tolerante foi construído, em grande parte, graças à nossa ignorância sobre episódios escabrosos da história do país, muito mais frequentes do que gostaríamos de imaginar.
O livro recém-lançado “Entre Integralistas e Nazistas” gera inquietude justamente por jogar luz sobre uma passagem nada nobre da primeira metade do século 20.
Há 90 anos, nascia oficialmente a Ação Integralista Brasileira (AIB), um grupo ligado ao cristianismo, com ideias nacionalistas e conservadoras, que adaptava o fascismo italiano à realidade dos trópicos. Plínio Salgado, líder do movimento, e sua turma conquistaram a admiração de boa parte dos intelectuais e da imprensa da época, e conseguiram emplacar alguns pontos que defendiam na Constituição de 1934.
É nesse contexto que entram em cena os Rocha Miranda. Os integralistas não eram necessariamente admiradores das práticas nazistas, mas aquela família do Rio de Janeiro, segundo o historiador Sidney Aguilar Filho, autor do livro, estendia um braço para Hitler e outro para Salgado.
A partir de 1933, Osvaldo Rocha Miranda levou dezenas de garotos de um orfanato da então capital do país para uma fazenda em Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo. Os meninos de 9 a 12 anos trabalhavam na lavoura a troco de comida, sob o olhar de capangas e de cães de guarda.
Se manifestassem sinais de insatisfação ou cansaço, eles eram submetidos a períodos sem refeições e a castigos físicos, como golpes de palmatória. Muitas vezes, acabavam encarcerados. Ou seja, eram meninos escravizados, mais de 40 anos depois da Lei Áurea.
Esse episódio, com uma porção de outros detalhes assustadores, provavelmente estaria perdido no passado não fosse a persistência de Aguilar Filho, que investigou o assunto para sua tese de doutorado e agora o lança em livro.
Tudo começou em uma sala de aula. Em 1998, ele falava sobre nazismo para uma turma do ensino médio quando uma aluna disse que muitos tijolos com o símbolo da suástica tinham sido encontrados na fazenda da família dela.
A informação não deixou Aguilar Filho em paz. Fez uma primeira visita ao lugar alguns meses depois e constatou que a fazenda, antigamente um polo importante de criação de gado, também marcava animais com o emblema nazista.
A pesquisa avançou, e o historiador descobriu que a fazenda tinha pertencido a Osvaldo Rocha Miranda e a seus irmãos, membros da Câmara dos Quarenta, um dos órgãos máximos da AIB.
Fontes documentais encontradas no Rio e em São Paulo e, principalmente, entrevistas com antigos moradores de Campina do Monte Alegre trouxeram novas revelações. O Juizado de Menores do Rio permitiu que Rocha Miranda levasse 50 garotos (48 pretos ou pardos) do Educandário Romão de Mattos Duarte para a propriedade da família no interior paulista. O fazendeiro teve ainda o aval da madre que dirigia o orfanato.
Osvaldo Rocha Miranda tinha um método para escolher os meninos. Do alto de uma escadaria de mármore do educandário, ele jogava balas no chão e ficava observando quais se lançavam com mais agilidade sobre as guloseimas. Com uma vara, o fazendeiro apontava na direção daqueles que considerava os mais ligeiros e pedia ao motorista que os separassem dos demais.
Os irmãos Rocha Miranda, segundo o autor, acreditavam na eugenia, conjunto de práticas que buscam um aprimoramento genético de grupos humanos. Não eram os únicos –importadas das Europa, as teorias raciais rapidamente se tornaram populares por aqui. “A higienização, a sanitarização e a eugenização das sociedades passavam, na visão de seus defensores, pelo controle social”, escreve Aguilar Filho.
Para eles, eugenia era isso: segregar garotos negros e miseráveis, levando-os para longe do centro urbano, sob um regime de escravidão.
Aloysio Silva, que morreu em 2015, era um dos poucos remanescentes da colônia agrícola durante a pesquisa realizada pelo historiador. Contou em entrevista que não eram chamados pelo nome, e sim por um número. Ele era o 23 –a tese de Aguilar Filho na Unicamp inspirou o documentário “Menino 23”, de Belisario Franca.
Aloysio lembrou ainda que acordavam às 5h, tomavam banho em uma piscina de água gelada e, às 7h, estavam na roça para começar a trabalhar. Iam até 10h, quando almoçavam e seguiam para a escola. Encerrada a aula, voltavam para a enxada.
Quando essa clausura para meninos foi desativada, em 1943, poucos conseguiram se adaptar à vida em sociedade. Em sua maioria, morreram jovens, sem família, com o corpo marcado pela violência.
*
ENTRE INTEGRALISTAS E NAZISTAS – RACISMO, EDUCAÇÃO E AUTORITARISMO NO SERTÃO DE SÃO PAULO
Preço R$ 70
Autor Sidney Aguilar Filho
Editora Alameda (342 págs.)