Ataque a Brasília desfaz imagem da capital do futuro, bela e alienígena

No plano-piloto, Lucio Costa, que falava em "inventar a capital definitiva do país", imaginou um mesmo choque de arestas, talvez não a cruz cristã, mas nave e transepto de uma catedral-aeronave

Folhapress Folhapress -
(Foto: Gabriela Bilo/Folhapress )

A barbárie no Planalto mostra que o futuro envelhece. E o estado de corrosão das utopias antes inabaláveis se faz mais dramático do que a decadência que se instala com o vagar do tempo. O ato fundador de Brasília, a descoberta do cerrado pela vanguarda e pelo delírio arquitetônico dispostos a ocupar as entranhas de um país de dimensão continental até então só comido pelas bordas, vem lastreado pela ideia de domar um deserto.

Seu marco definidor, com ambições de anunciar uma nova era, ecoa a violência da cruz cabralina erguida na primeira praia conquistada deste território. Na areia branca, o símbolo de madeira foi fincado em nome de Deus, da coroa portuguesa e dos desígnios extrativistas. No plano-piloto, Lucio Costa, que falava em “inventar a capital definitiva do país”, imaginou um mesmo choque de arestas, talvez não a cruz cristã, mas nave e transepto de uma catedral-aeronave.

Brasília, uma orquestração de traços leves pousados sobre a imensidão da paisagem virgem e esgarçada sob um céu infinito, dava as costas tanto para o mar quanto para o passado.

Surgiu como cidade-movimento, um destino manifesto territorial e temporal. As linhas e ângulos dos palácios e ministérios de Oscar Niemeyer dispostos ao longo dos eixos desenhados por Costa se ancoraram em formas de outro mundo, a ideia de síntese das vanguardas em voga com acenos a um passado colonial e barroco ali digerido, neutralizado, escandido.

A capital que nasceu talhada do ar do futuro refuta nos contornos diáfanos de suas colunas e salões qualquer ideia de ruína que ali se pudesse instalar, fosse ou não próspera a nação que se reinventava naqueles tempos acelerados.

Velocidade era a ordem. Nas fotografias da construção de Brasília, o pó do cerrado logo se materializa como o esqueleto dos ministérios, uma geometria límpida ainda descarnada, mas a poucos passos de se tornar a quase cidade-máquina reluzente sonhada pelos arquitetos. Era um passo além de Le Corbusier, das “villes radieuses”, das cidades-jardim.

Niemeyer e Costa inventaram a cidade espaçonave como manifestação concreta de um eterno porvir cravado no presente, uma acachapante visão caída do céu, talvez protegida pelo firmamento celebrado nos panos de vidro escorrendo entre os pilares da Catedral Metropolitana.

Clarice Lispector, aliás, também tratou do caráter alienígena da cidade. “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia veem nisso uma acusação. Mas minha insônia não é bonita nem feia, minha insônia sou eu, é vívida, é o meu espanto. É ponto e vírgula.”

O escritor italiano Alberto Moravia, avistando Brasília do alto poucos meses depois de sua inauguração, teve a mesma impressão de ver uma cidade que “caiu como um meteoro em chamas, sacrificando a terra árida com sangue”. Os prédios que despontavam ainda tímidos no horizonte, ele escreveu, pareciam se sobrepor sem cerimônia e com arroubos de força a nacos de terra vermelha que antes lembravam “um monte de bifes ensanguentados expostos no balcão de um açougueiro”.

Mas os esqueletos ali já eram espetáculo, e os contornos de concreto branco, como espuma líquida
moldada pelo desenho, sem peso, de Niemeyer, arrematavam o assombro. Não faltavam metáforas anatômicas, aliás, nas primeiras descrições de Brasília, tais quais as “complicadas aortas pretas deste coração de cimento”, que era o sistema viário de Lucio Costa, na visão de Moravia, mas o marco do lugar –e a condenação da capital ao moderno e ao futuro– seria a negação da escala humana tão entranhada na experiência de Brasília.

Sua inscrição no plano da utopia passava por seu aspecto sobre-humano. Brasília era uma sucessão de monólitos indestrutíveis, caixas espectrais de vidro e latão, o vazio tornado monumental em traços de precisão heroica, como se marcados por uma vontade de invenção de uma nova e estarrecedora caligrafia construtiva.

Não espanta que a visão de Brasília gravada no inconsciente coletivo seja a de uma Esplanada dos Ministérios vazia, o Congresso e suas cúpulas brilhando ao fundo.

A capital-monumento não comporta manchas, marchas, escombros. É a miragem no cerrado plácido, uma anticidade enigmática como as pirâmides egípcias, as estátuas da ilha de Páscoa, estruturas que são ao mesmo tempo futuristas e ancestrais. Não há espaço para corpo, sangue, suor e lágrimas.

Sua ambiguidade formal, algo entre fóssil imaculado surpreendido no interior do Brasil e aeronave ou meteoro cintilante que ali caiu, parece blindar a capital contra seu próprio fim.

Brasília não envelhecia, ao menos no plano das ideias, talvez por já antecipar em seus contornos as obsessões e estratégias de uma era tão desgostosa do próprio presente que fez dele um delírio futurista –a capital de Niemeyer antevê os arroubos da “space age”, não destoa das visões de um Stanley Kubrick e seu “2001: Uma Odisseia no Espaço” nem dos cenários dos “Jetsons” ou, em última instância, dos letreiros e neons das lanchonetes de beira de estrada espalhadas por Los Angeles e Las Vegas, o pó do faroeste sublimado pela potência e zunido dos brilhos elétricos.

Mesmo com ambições de estar fora do tempo, flutuando no éter luminoso do eterno avanço tecnológico, Brasília não escapou à fúria da história e da política. O coração do país já não resiste aos enredos trágicos que se abateram sobre o Planalto.

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