Justiça ratifica abordagens policiais baseadas na cor da pele, diz estudo

Episódios como os analisados pelos estudiosos, motivados pela cor da pessoa, não são raros, e a eles se dá o nome de perfilamento racial

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Rodrigo, 22, foi abordado pela polícia no bairro do Butantã, em São Paulo, e teve uma arma apontada para seu rosto – Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

BRUNO LUCCA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em casos de abordagens policiais e detenções justificadas pelos agentes com descrições raciais do réu, a Justiça tende a ratificar versão da segurança, afirma estudo do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas).

O grupo analisou 1.837 decisões em segunda instância em que as defesas questionavam a validade das provas por, segundo elas, terem sido agravadas em razão de preconceitos raciais expressos pelo policial. Foram consideradas prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorridas em residências.

Em 98% dos casos aos quais o núcleo de estudo teve acesso ao inteiro teor do processo e ao testemunho policial racializado (1.509), os juízes rejeitaram as argumentações dos advogados, levando à manutenção da condenação, e em apenas 2% (29) as nulidades são acolhidas, absolvendo os acusados. Outras 299 decisões foram descartadas porque os pesquisadores não conseguiram ter acesso completo.

No universo estudado, 69% das testemunhas são os próprios agentes, confirmando, segundo os pesquisadores, “a tendência de sobrerrepresentação dos testemunhos policiais durante o processamento dos casos”, desequilibrando o processo.

Em todo o país, episódios como os analisados pelos estudiosos, motivados pela cor da pessoa, não são raros, e a eles se dá o nome de perfilamento racial.

“Temos policiais que operam sob lógica de combate ao inimigo. Este, geralmente, tem a cara de um homem negro. É, para os agentes, a cara da criminalidade. O perfilamento racial é a lógica de justificar, corroborar e agravar uma suspeição pela cor da pele”, diz Amanda Pimentel, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV.

Em uma tarde de junho de 2020, Rodrigo, um homem negro, então com 19 anos, caminhava por uma rua do Butantã, bairro da zona oeste de São Paulo, quando foi abordado por três agentes da Polícia Militar. Ele, que prefere não ser identificado pelo nome completo, voltava da casa de uma amiga.

Segundo conta, os agentes o deixaram de joelhos. A primeira arma foi apontada para sua nuca, a segunda para a lateral de seu corpo e a última para sua testa. Não havia escapatória, pensou, e ele morreria e seria jogado em qualquer vala pela cidade.

Mas Rodrigo carregava uma carteirinha da USP (Universidade de São Paulo), onde estudava audiovisual. Após longos minutos, um dos agentes de segurança, ao observar a identificação, pediu para os colegas soltarem o abordado.

A suspeita sobre o jovem foi justificada pelos policiais por ele estar de touca e mascarado. O dia era frio, relata Rodrigo, e a pandemia de Covid que se iniciava demandava o uso da proteção facial.

Um julgamento em andamento no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o perfilamento racial pode criar legislação sobre o tema. O caso envolve um habeas corpus proposto pela Defensoria Pública de São Paulo em que se examina possível nulidade de prova decorrente de abordagem contra um homem negro.

No inquérito, os agentes de segurança afirmam ter avistado “ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto ao meio-fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo algo”.

Com apreensão de 1,53 grama de cocaína, o homem alegou ser usuário, mas foi denunciado por tráfico e, com base no relato dos agentes, condenado a reclusão de sete anos, 11 meses e oito dias.

Antes de chegar ao Supremo, a discussão sobre a ilicitude da prova começou no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Lá, o ministro Sebastião Reis se posicionou pela invalidade do relato policial em razão de a suspeita ter sido baseada na cor da pele. Reis foi vencido, mas a pena reduzida para dois anos e 11 meses.

Quando, por insistência da defesa, o caso chegou à mais alta corte do país, no início deste mês, o ministro relator Edson Fachin votou favoravelmente ao habeas corpus, anulando a medida. Segundo ele, não há dúvidas da motivação por estereótipos raciais.

Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e André Mendonça não acompanharam a relatoria. No entanto, os ministros deixaram brecha para o debate sobre abordagem discriminatória. Sendo assim, jurisprudência sobre o tema pode ser criada sem aplicação no caso concreto. Após os votos dos colegas, Luiz Fux pediu vista, suspendendo o julgamento. Não há previsão de retomada.

Para Amanda Pimentel, do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV, a discussão no Supremo pode, além de fixar tese a regular a postura dos policiais durante a abordagem, aprimorar os relatos a serem utilizados como prova.

“Com a fundamentação de uma jurisprudência, o tribunal está dizendo ‘olha, vocês policiais precisam apresentar para a gente elementos objetivos e concretos. Nada de hipóteses preconceituosas, que serão anuladas'”, opina.

Na discussão, há ainda outro lado, o do argumento jurídico existente que protege os policiais durante suas abordagens. É a chamada fundada suspeita (art. 240 do Código de Processo Penal), que, com poucas ressalvas, permite buscas quando possível ilicitude é observada.

Pimentel afirma que a lei brasileira nunca definiu com exatidão o que é o preceito de suspeita. Na ausência de objetividade legal, os policiais podem, em tese, decidir o que é uma atitude ou comportamento duvidoso a partir de suas convicções.

“Esse julgamento traz justamente a possibilidade da invalidação desses atos compostos de elementos racializados, vagos e imprecisos, deixando claro quando o policial está amparado de elementos legais para a abordagem ou não”, afirma a pesquisadora.

Apesar da importância de se consolidar uma tese, isso não basta para mudar a conduta dos policiais, afirma Leopoldo Soares, professor de direito público da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Para mudar essa realidade, uma decisão do Supremo deve vir acompanhada de outras tantas ações e circunstâncias a desconstruir algo estrutural, o racismo”, declara.

O especialista sugere a possibilidade de indenização do Estado após comprovada má-fé do sistema público de segurança. Para ele, isso inibiria ações policiais precipitadas pela discriminação racial.

Ainda não há previsão para retorno do caso ao plenário do STF. Faltam os votos dos ministros Fux, solicitante de vista, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.

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