O duro dilema dos que precisam estudar e trabalhar

Realidade é ignorada por instituições de ensino superior. Riscos são enormes para saúde mental e física, alerta especialistas

Da Redação Da Redação -

Estudar ou trabalhar? Essa é uma duvida que ecoa na mente de milhares de brasileiros jovens e adultos quando se veem diante de uma oportunidade de cursar o ensino superior.  Pode parecer uma questão simples de se resolver para alguns, mas muitos nem sequer possuem o benefício da dúvida. Para estes, não existe “estudar ou trabalhar” e sim estudar e trabalhar.

É o caso de estudantes que precisam pagar a própria faculdade, como Marcos Antônio Assunção, de 24 anos, que faz arquitetura e urbanismo. Desde que começou o curso há cinco anos, ele trabalha de segunda a sexta em tempo integral e aos sábados até às 13h. O curso é conhecido como um dos mais desgastantes, pois exige bastante tempo extra para tarefas manuais como as famosas maquetes. E esse é um tempo que Marcos não tem, realidade que o obriga a dormir pouco menos de quatro horas por dia.

Mesmo caso de Indiara Jaime que, como esposa e mãe, concilia trabalho e estudos para ajudar a completar o sustento da casa.  “É cansativo. Muitas vezes eu vou pra aula indisposta por causa do cansaço do trabalho. Mesmo assim eu me esforço para prestar atenção e aproveitar ao máximo o que os professores passam, mesmo com todo cansaço, porque tem muito trabalho, muita prova então não posso faltar muitas aulas por causa da indisposição. Acho que muita gente desiste por causa da exaustão do corpo mesmo”, disse para a reportagem.

Indiara é técnica em enfermagem e trabalhava em um hospital da cidade, mas como sempre teve vontade de fazer pedagogia, decidiu seguir esse sonho e iniciar a faculdade. Ela é uma das muitas estudantes que precisaram deixar o trabalho em tempo integral para iniciar um estágio e se contentar com a bolsa que representa menos da metade de um salário convencional. Na casa da Indiara todo mundo estuda. O marido é corretor de imóveis e cursa engenharia civil e o filho ainda está na escola.

Indiara Jaime aguenta ser mãe, esposa, trabalhar em hospital e ainda estudar pedagogia. (Foto: Arquivo Pessoal)

Estudantes mães são as que mais sofrem com a rotina imposta pelas faculdades. Mayara Regina, de 18 anos, também estuda pedagogia e no momento nem sequer pode trabalhar porque a faculdade só oferta disciplina no período matutino, situação que leva a mãe dela a pagar as mensalidades.

Como não pode trabalhar porque o curso é de manhã, Mayara não tem recursos para contratar alguém que fique com a filha de apenas um ano para que ela trabalhe nos outros períodos. Somado a isso, o estágio que jovem mãe custou conseguir não é remunerado.

“Difícil mesmo foi bem no começo quando minha filha nasceu. Eu estava amamentando e a faculdade pediu que eu não levasse ela para aula para não ‘atrapalhar’, conta a aluna, que também reclama das aulas que precisa assistir aos sábados de manhã.

Qualificação ou trabalho?

A história acadêmica de Camila Bastos é de frustração. Ela já estava terminando a faculdade de história na Universidade de Brasilia (UnB) quando quis fazer mestrado na mesma instituição, mas se deparou com uma grade de disciplinas completamente irregular, todas ofertadas de manhã ou tarde.

“Eu cheguei a questionar um dos professores que era coordenador do mestrado: ‘Poxa, por que as matérias são todas de manhã ou de tarde? Quem trabalha não têm condições de fazer um mestrado na UnB?’ E ele me respondeu: ‘Você pode concorrer a bolsa. ’ Mas eu já trabalhava! A bolsa não deveria ser para quem precisa? Ficou subentendido que eu deixasse meu emprego e concorresse a bolsa, o que no meu caso, que já estava estabilizada no meu emprego, seria impossível. O resultado é que eu não fiz o mestrado que queria e provavelmente nunca vou fazer”, lamentou.

Sono e problemas

Lucas Zandoná, de São Paulo, tinha como maior dificuldade lidar com o sono e se aguentar acordado em todas as aulas. Herisson de Orizona começou o curso de física em uma faculdade publica e além de encontrar dificuldade para encaixar as matérias com o horário da faculdade, não tinha muito tempo para estudar, aproveitava os intervalos no trabalho e se via obrigado a sacrificar as noites de sono quando as provas se aproximavam. Resultado: exaustão.

É uma situação preocupante, como observa Débora Fernandes, psicóloga que também já viveu na pele esse tipo de rotina.  A falta de sono e as noites regadas a café e energético podem parecer inofensivas no começo, mas trazem problemas graves a longo prazo.

“Sabemos que o recomendado é que devemos dormir 08h por noite. E o jovem que tem essa rotina dorme em média 05h, as vezes até menos. Esse sono reduzido pode deixar o metabolismo mais lento, o sistema imunológico enfraquecido, pode afetar profundamente a memória, a capacidade de aprendizagem, a criatividade, a produtividade e a estabilidade emocional. A má qualidade do sono pode ser um fator de risco para a depressão. Dormir é extremamente importante”, diz.

A psicoterapeuta Elionai Gomes concorda lembra que a vida não pode se resumir a trabalhar, estudar e dormir. Vida social e convívio familiar são importantes.

Psicoterapeuta Elionai Gomes: ‘viver é preciso’ (Foto: Ana Clara Morais)

“A pessoa precisa de descansar. É muito difícil para quem trabalha e estuda conseguir um tempo para descansar. Jovem precisa ter lazer, vida social, isso é fundamental. E muitas vezes ele não tem tempo e nem tranquilidade para sentar com os amigos para ouvir uma musica, assistir um filme ou conversar. Ele não tem tranquilidade porque mesmo ali no ambiente de lazer está o tempo todo preocupado que alguma coisa está descoberta, ele deveria estar estudando ou até mesmo que deveria estar usando aquele tempo para dormir e descansar para se sentir mais disposto”.

Números

As estatísticas indicam que cada vez mais pessoas ingressam no ensino superior no Brasil. Ao mesmo tempo, o índice de evasão ultrapassa a marca de 21%, conforme Oscar Hipólito, reitor da Universidade Anhembi Morumbi e vice-presidente acadêmico da Laureate Brasil. Em números esse percentual representa 1,4 milhões de alunos.

Um dos grandes motivos de tantas desistências gira em torno exatamente dessa rotina pesada que envolve a necessidade de trabalhar e estudar.

Nota da reportagem

São muitos os alunos que não encontram emprego nos horários disponíveis ou buscam matérias que sejam ofertadas em horários alternativos. Muitos deles mães e pais que não encontram creches ou, como nas histórias narradas na reportagem, não tem renda para pagar quem cuide dos filhos enquanto estão fora. Muitos, simplesmente, não conseguem aguentar toda a pressão e desenvolvem problemas de saúde física e emocional e desistem de seus cursos. Os motivos podem ser muitos, mas estão estampados e precisam de solução.

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