Pandemia pode aumentar casamentos infantis e reverter progresso de 25 anos
Cada ano, 12 milhões de garotas têm a infância abreviada por serem obrigadas a se casar cedo demais
Flávia Mantovani e Patricia Pamplona, de SP – “Naquele momento, todos os meus sonhos foram destruídos.” Assim a indiana Sunita, 16, descreve como se sentiu ao descobrir que seria forçada a se casar e deixar a escola, aos 12 anos. Hoje ativista pelos direitos das meninas em sua comunidade, ela deu seu depoimento à ONG Save the Children.
A cada ano, 12 milhões de garotas têm a infância abreviada por serem obrigadas a se casar cedo demais. Esse cenário vem melhorando, e nos últimos dez anos a proporção de mulheres comprometidas antes dos 18 anos no mundo caiu de 1 em cada 4 para 1 em cada 5.
Mas agora a tendência de queda está ameaçada pela pandemia. Um estudo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) estima que a crise sanitária deve empurrar 10 milhões de meninas para casamentos precoces na próxima década. Esse número se somará aos 100 milhões já previstos anteriormente para o período, correndo o risco de reverter um progresso de 25 anos de redução do índice.
O tema virou motivo de preocupação de várias entidades, inclusive no Brasil –quarto país do mundo com mais casos–, e até do Banco Mundial, que já estimou que os casamentos infantis farão os países em desenvolvimento perderem trilhões de dólares até 2030. Segundo a ONG Visão Mundial, o aumento no número de casamentos infantis já está sendo sentido desde o ano passado. De março a dezembro de 2020, suas equipes receberam mais do que o dobro de chamados para atuar em casos do tipo do que no mesmo período de 2019.
Já a Save the Children divulgou que a pandemia levou a um aumento de ao menos 1 milhão no número de meninas grávidas em 2020 –um dos maiores motivadores do casamento precoce, que afeta muito mais mulheres que homens.
Dos 12 milhões de garotas que se casam anualmente, 2 milhões têm menos de 15 anos. “E essas são apenas as que nós conhecemos. Acreditamos que seja o topo do iceberg”, afirma a organização. Como muitas uniões não são oficializadas –e essa informalidade é maior na América Latina e no Caribe–, os números reais provavelmente são bem maiores.
Além de afetarem diretamente a saúde das pessoas, epidemias frequentemente têm efeito desproporcional sobre mulheres e meninas, diz Rita Soares, diretora de aprendizado e impacto da organização Girls not Brides.
“Muitos dos fatores complexos que favorecem o casamento infantil em ambientes estáveis são exacerbados em situações de emergência, quando estruturas familiares e comunitárias se deterioram”, explica. “Uma pandemia como essa apresenta desafios únicos que podem aumentar o número de casamentos infantis tanto na fase aguda quanto na de reconstrução.”
São vários os mecanismos pelos quais a crise sanitária contribui para o problema. O fechamento das escolas é um dos principais, já que há evidências de que a educação é um dos maiores antídotos contra o casamento precoce.
Estatisticamente, quanto mais tempo uma menina frequenta as aulas, menor é o risco de se casar antes dos 18 anos. Calcula-se que cerca de 1,6 bilhão de crianças no mundo tiveram que interromper os estudos devido à Covid-19, e 11 milhões de garotas podem abandonar a escola em 2021. Muitas nunca vão retornar.
Segundo a experiência com o surto de ebola na África Ocidental de 2013 a 2016, quanto mais tempo as aulas são suspensas, menor é a chance de que as meninas voltem a estudar depois, especialmente se elas não tiveram acesso à educação a distância. Além disso, fora da escola as crianças passam mais tempo em casa sem supervisão, ficando expostas a abusos e a atividades sexuais no geral, o que pode levar a uma gravidez indesejada.
A suspensão do atendimento em serviços de saúde sexual e reprodutiva na quarentena, dificultando o acesso a contraceptivos, também favorece as gestações em adolescentes.
A crise econômica decorrente da pandemia é outro fator importante nessa equação. “O casamento da menina alivia a família do estresse econômico de duas maneiras: a perspectiva de receber um dote e o fato de ter menos bocas para alimentar”, diz o documento do Banco Mundial. “A insegurança econômica causada pela recessão em comunidades já vulneráveis está forçando as famílias a casarem suas filhas mais novas, vistas como um fardo financeiro, e não como potenciais trabalhadoras que vão ganhar salários.”
Nas comunidades nas quais o noivo paga um dote à família da noiva, o incentivo é ainda maior. Quando é o contrário, há dois cenários. No geral, o casamento de meninas é desencorajado. Mas há pais que preferem destinar ao casamento as filhas muito novas, pois o dote tende a ser mais baixo quanto menor é a idade.
Casar cedo costuma mudar o curso de toda a vida de uma mulher. Estudos mostram que elas têm menor chance de negociar sexo seguro com o parceiro, ficando suscetíveis a adquirir infecções sexualmente transmissíveis e à gravidez. Gestantes jovens demais correm mais risco de intercorrências de saúde e até de não sobreviver ao nascimento.
Por terem que cuidar da casa e da família, muitas delas abandonam a escola e não constroem uma carreira. Elas também estão mais expostas à violência doméstica e a feminicídios. “O casamento infantil ajuda a perpetuar o ciclo da pobreza e tem consequências físicas, emocionais e psicológicas”, resume Soares.
As consequências não se restringem às mulheres. A sociedade como um todo perde, mostra estudo de 2017 do Banco Mundial. “O casamento precoce mina os esforços para combater a pobreza e alcançar equidade e crescimento econômico”, diz um dos autores.
Segundo a organização Save the Children, o sul da Ásia, a África Central e Ocidental e a América Latina e Caribe são as regiões com mais risco de registrarem aumento de casamentos infantis na pandemia.
No Brasil, assim como no mundo, as causas que levam ao casamento infantil estão muito ligadas à pressão familiar por uma questão moral, de perda de virgindade ou gravidez durante uma relação, e fatores econômicos, quando o casamento é imposto como forma de trazer mais renda, por ser mais uma pessoa trabalhando, aponta Itamar Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil. A associação trabalha pela proteção à infância e à adolescência.
O país, no entanto, não tem um monitoramento contínuo da questão. A última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher foi realizada em 2006. Com os números daquela época, o Brasil fica em quarto lugar no ranking absoluto, com 3 milhões de mulheres de 20 a 24 anos que se casaram antes dos 18 anos, ou 36% do total das casadas nessa faixa etária.
O matrimônio de menores de 16 anos é proibido no Brasil, mas a legislação é recente, aprovada em 2019. Até aquele ano, era possível se casar para evitar pena criminal por estupro de vulnerável ou devido à gravidez. Hoje, jovens entre 16 e 18 anos podem se unir se forem autorizados pelos pais ou por meio de processo judicial.
O Brasil não conta com um programa do governo para lidar com a questão, segundo o gerente da Childhood, o que para ele faz parte das soluções necessárias. Gonçalves pontua ainda a importância de dar visibilidade ao tema tanto em casa como nas escolas, por meio da educação sexual, além da lei “nua e crua no papel”.
Para ele, aliás, a legislação deveria proibir completamente o casamento antes dos 18 anos, sem exceção. Por fim, um programa que de fato empoderasse as meninas para realizarem projetos de vida também é peça-chave, aliado à conscientização da população. “Isso passa como algo marginal, como se não fosse um problema da nossa sociedade.”
Acabar com o casamento infantil até 2030 é uma das metas de desenvolvimento sustentável da ONU. Além de leis e políticas públicas protetoras da infância, as soluções passam por garantir educação e saúde sexual e reprodutiva, fazer campanhas de conscientização e incluir as crianças e adolescentes nas ações.
A piora prevista nos índices é uma probabilidade, mas não precisa ser uma sina, diz o Unicef. “Programas efetivos aplicados em larga escala podem adiar a idade em que os jovens se casam e reduzir o número adicional de casamentos infantis pela metade.”