Tensão volta a subir na crise da Ucrânia com acusações e exercícios militares

Ponto alto dos conflitos foi a inusual entrevista coletiva após encontro entre Lavrov e Truss

Folhapress Folhapress -

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após dias de esforços diplomáticos para tentar baixar a tensão entre Rússia e Ocidente, a crise em torno da Ucrânia voltou a ferver nesta quinta-feira (10).

Em Moscou, houve uma troca agressiva de acusações durante o encontro do chanceler Serguei Lavrov e a a sua colega britânica, Liz Truss. Em Bruxelas, o premiê do Reino Unido falou no “momento mais perigoso da crise” enquanto o Kremlin faz grandes manobras militares ao norte de Kiev, e a Ucrânia disse estar pronta para enfrentar os russos no mar Negro.

Até aqui, o ponto alto dos conflitos foi a inusual entrevista coletiva após o tenso encontro entre Lavrov e Truss. O russo, um decano da diplomacia mundial, foi duro: “Estou honestamente desapontado que nós tenhamos tido uma conversa entre um idiota e um surdo. Nossas explicações mais detalhadas caíram em solo despreparado”.

“Eles [os ocidentais] dizem que a Rússia está esperando o solo congelar para que nossos tanques possam entrar mais facilmente na Ucrânia. Eu acho que o solo estava assim aqui com nossos colegas britânicos, para quem inúmeros fatos que trouxemos apenas quicaram para longe”, afirmou.

“Eu não vejo outra razão para ter 100 mil soldados estacionados na fronteira senão para ameaçar a Ucrânia. Se a Rússia é séria sobre diplomacia, precisa remover essas tropas e desistir das ameaças”, retrucou Truss.

A desavença é previsível, mas o tom, não. É possível argumentar que ele ficará assim até que uma das partes ceda algo sem parecer que o fez, sem necessariamente haver um conflito militar, mas há diversos perigos na tática.

Desde novembro, o presidente Vladimir Putin resolveu emparedar o Ocidente e apresentou um ultimato para cristalizar sua visão estratégica de ter o antigo entorno da União Soviética neutro ou aliado.

Para tanto, quer que a Ucrânia seja impedida formalmente de entrar na Otan, aliança militar que se expandiu a leste a partir de 1999 e absorveu antigos satélites de Moscou. Pediu também a saída de forças ofensivas desses membros orientais do clube, além de abrir negociações sobre mísseis e exercícios militares -as moedas de troca mais simples.

O Ocidente disse não para as demandas centrais, e o impasse se dá porque para tornar crível sua disposição, o Kremlin reforçou com tropas equipamentos e até hospitais de campanha. Para EUA e Otan, é sinal de invasão iminente.

Já Kiev, embora acuse diuturnamente Moscou de ameaçá-la, adota um tom menos alarmista. O pânico, diz o presidente Volodimir Zelenski, é infundado.

Putin pintou um quadro grande de sua ideia para o Leste Europeu, mas ao fim pode estar buscando uma solução mais pontual: encerrar o conflito no leste da Ucrânia, iniciado em 2014. Naquele ano, o presidente reagiu à queda de um governo pró-Kremlin em Kiev anexando a região de maioria étnica russa da Crimeia.

Na sequência, fomentou a ação de separatistas pró-Rússia no Donbass, o leste do vizinho. Cerca de 14 mil pessoas morreram no conflito, que deixou duas regiões autônomas nas mãos dos rebeldes. Kiev exige a volta delas de forma integral, e não com um certo grau de independência que na prática tornaria sua entrada na Otan impossível -a aliança é refratária a países com rixas territoriais sérias.

Esse desenho para o leste foi previsto nos Acordos de Minsk, que Putin quer ver implementados e Zelenski, não. Nesta semana, ao visitar os dois líderes, o presidente francês, Emmanuel Macron, apoiou a proposta russa. Apesar de queixas de lado a lado, houve palavras de conciliação em Moscou e Kiev.

Mas a dinâmica da crise não permitiu 24 horas de refresco, com a troca de agressões verbais entre os chanceleres nesta quinta. O chefe de Truss, o premiê Boris Johnson, visitou a sede da Otan em Bruxelas e teceu comentários ainda mais sombrios.

“Algo desastroso pode acontecer muito rapidamente. Nossa inteligência segue sombria. Este é provavelmente o momento mais perigoso, diria, no curso dos próximos dias, no que é a maior crise de segurança que a Europa enfrentou em décadas”, disse.

Boris, aliado mais próximo dos EUA do que da União Europeia, tenta ocupar protagonismo que lhe foi roubado por Macron na crise. Ambos têm suas agendas: o britânico está sob pressão para deixar o cargo, o francês enfrenta eleição em abril.

Mas o premiê se referia especificamente ao início, nesta quinta, de uma grande manobra militar de dez dias entre forças russas e de Belarus, a ditadura aliada do Kremlin que fica ao norte da Ucrânia. Em menos de três horas de carro é possível ir da fronteira até Kiev.

Elas já ocorreram antes durante a crise, mas não na escala atual, com 30 mil soldados russos e um número incerto de belarussos operando sistemas antiaéreos, blindados e aviões de ataque avançados. O Kremlin havia anunciado o exercício há um mês, e diz que ao fim dele todos voltarão para os quartéis.

É provável que seja assim, mantendo a Otan de cabelo em pé, mas há também o risco de Putin ter outros planos ou de algum incidente fronteiriço escalar fora de controle. Os russos já têm forças concentradas no entorno leste da Ucrânia, na Crimeia e até uma pequena ponta de lança a oeste, no território separatista russo da Transdnístria (Moldova).

Há também ação no mar Negro, que banha a Crimeia e a costa ao sul da Ucrânia. Seis navios de desembarque de tropas russos estão se exercitando na região, o que gerou a acusação da Marinha de Kiev de que há uma militarização em curso contra a qual ela está pronta para agir.

A Crimeia sedia historicamente a Frota do Mar Negro da Rússia, que inclusive alugava sua base em Sebastopol quando o território estava em mãos ucranianas ao fim da Guerra Fria. Kiev disse que “está pronta para enfrentar” os russos, se necessário, nas águas.

Na prática, não têm poder de fogo para tanto. Nos últimos anos, a Otan fez diversos exercícios militares e mantém presença constante naquele mar, mas entrar em um conflito é outra história -a Ucrânia não faz parte do clube, ao fim, ninguém quer escalar uma guerra em que os dois lados têm armas nucleares.

O secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, voltou a dizer que o tempo da negociação está se esgotando. Ele também não escapou das críticas de Lavrov: “Stoltenberg repetidamente diz que a Otan precisa ter papel especial na segurança do Indo-Pacífico, no mar do Sul da China em particular. Isso é um jogo perigoso”.

As palavras estão em linha com o pacto de cooperação formalizado entre Putin e o líder chinês, Xi Jinping, na semana passada. Ambos os países dizem que agirão de forma conjunta contra pressões e sanções do Ocidente.

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