Egito chega ao centenário da independência em inércia geopolítica

País foi ocupado pelas forças britânicas em 1882 e, daquele tempo em diante, o Império Britânico permaneceu na região

Folhapress Folhapress -
Egito chega ao centenário da independência em inércia geopolítica (Foto: Flickr)

BÁRBARA BLUM
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Lembrado por eventos recentes como o encalhe do navio Evergreen no canal de Suez, em 2021, ou a Primavera Árabe, em 2011, o Egito celebra nesta segunda-feira (28) o centenário de sua independência, que foi seguida por uma monarquia.

O processo, segundo os professores Reginaldo Nasser, especialista em Oriente Médio com livre docência na PUC-SP, e Arthur Goldschmidt Jr., professor emérito da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, foi mais simbólico do que efetivo –e não conferiu o status de liderança entre países árabes, aspecto que, em alta na segunda metade do século 20, voltou a não fazer parte da realidade egípcia.

“[O ano de 1922] não foi um grande passo para o Egito. Ainda havia um alto comissariado britânico, conselheiros britânicos, tropas do Império, inclusive de origem canadense, indiana, sul-africana, australiana”, diz Goldschmidt.

“Essas monarquias acabavam sendo uma independência negociada. Adotando o modelo inglês, essas monarquias vieram, mas estavam longe de ser nacionalistas”, diz Nasser. “É uma independência entre aspas.”

Originalmente uma espécie de parte privilegiada do Império Otomano, o Egito foi ocupado pelas forças britânicas em 1882, após um ensaio de levante nacionalista. Daquele momento em diante, o Império Britânico permaneceu na região, apesar de a área não ser, oficialmente, uma colônia administrada pelo Commonwealth.

“Foi uma daquelas situações em que quanto mais eles ficaram, mais encontravam motivos para ficar”, diz Goldschmidt.

Nasser conta que registros da época mostram, inclusive, um Egito ocidentalizado: “As referências eram todas ocidentais na elite egípcia. O Egito absorveu muita coisa [da tradição ocidental]: a ciência, as universidades. Aquela tradição de uma elite mais letrada, de jornais.

Tentaram recriar um modelo europeu dentro do Oriente Médio”, diz.

Esse aspecto de valorização da cultura árabe ainda mantém o Egito central em pesquisas como ponto de referência na região do Oriente Médio e Norte da África, mas, no quesito de influência política e militar, a era de ouro já passou.

Atualmente comandado pelo regime militar do general Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, a partir da independência de 1922 o Egito viveu uma monarquia, encerrada em 1952 com o processo conhecido como Revolução dos Oficiais Livres, liderada pelos militares de carreira.

Sucedeu-se o momento das lideranças de generais: Mohamed Naguib, Gamal Abdel Nasser, Anwar Sadat e Hosni Mubarak, deposto na Primavera Árabe.

O país viveu, então, um brevíssimo período governado pelo primeiro presidente democraticamente eleito da história, Mohamed Mursi, que alçou a Irmandade Muçulmana ao poder, até que finalmente houve a retomada do governo militar, com Al-Sisi.

Diferentemente da revolução de 1952 e da Primavera Árabe, a independência de 1922 não foi, segundo os professores, um processo violento. Foi composto por algumas manifestações e chegou a haver um momento de corte de linhas de telégrafo do Cairo, mas os presos e mortos passaram longe dos números contabilizados na Primavera Árabe.

Estimativas com base nos governos e em relatórios de entidades de defesa dos direitos humanos apontam para cerca de 900 mortos em 2011 e mais de 6 mil feridos. As estimativas de prisões ao longo dos dez anos que seguiram a revolta chegam a 60 mil detidos.

Apesar de ter se tornado referência internacional durante a Primavera Árabe –a ocupação da praça Tahrir, no Cairo, inspirou o Occupy Wall Street e o 15M espanhol–, a era de ouro da influência política egípcia começou em 1952 –e acabou, na análise dos professores, em 1979, com a assinatura dos acordos de Camp David, que selaram a paz entre o país e o vizinho Israel, inimigo comum das nações árabes da região.

A partir da entrada dos militares no poder, principalmente Gamal Nasser, o Egito aumentou o tom na liderança do pan-arabismo na região, ou seja, a advogar a favor da união dos povos e nações árabes. A Liga Árabe, organização de 1945 que consolidava institucionalmente essa ideologia, foi liderada pelo Egito –até hoje sede da Liga.

Goldschmidt atenta, porém, para uma mudança de hegemonia dentro do grupo, que passa a responder mais diretamente aos interesses dos países exportadores de petróleo, como a Arábia Saudita.

O apogeu do nacionalismo e da influência regional do Egito foram, segundo o professor Nasser, com a nacionalização do canal de Suez, em 1956. A ação do presidente Nasser foi seguida por uma ofensiva de Israel em conjunto com a França e a Inglaterra –que ainda detinha poder sobre a área.

Esse foi um raro episódio em que os Estados Unidos e a União Soviética ficaram lado a lado durante a Guerra Fria, em apoio ao Egito. Ao final do conflito as ex-potências coloniais saíram derrotadas e Nasser fortaleceu seu apelo anticolonialista na região.

Até hoje, o canal preserva importância fundamental para o Egito, inclusive com entrada de receita. “[A crise do Evergreen] mostrou o tanto que ele continua importante para a circulação de mercadoria, inclusive petróleo. É um ponto fundamental e ao mesmo tempo uma marca do colonialismo”, diz Reginaldo Nasser.

Nasser atenta, porém, para a necessidade de cuidado na hora de analisar o conflito, que não significou um alinhamento egípcio nem com o capitalismo dos americanos, nem com o socialismo soviético. “Ao mesmo tempo que o nacionalismo aparece como contraponto ao imperialismo americano, ele foi um instrumento contra o comunismo. Nasser reprimiu o comunismo no Egito. Esse nacionalismo árabe encerra uma contradição”, diz.

O presidente egípcio ficou conhecido por um papel de liderança do movimento dos não alinhados, ou seja, de antigas colônias que não se identificavam com os alinhamentos ideológicos da Guerra Fria.

No período, o projeto era, antes de mais nada, de desenvolvimento econômico: além da nacionalização do canal, foi feita uma reforma agrária e houve incentivo à industrialização –que rendeu frutos. Arthur Goldschmidt conta que no momento da independência, em 1922, cerca de 90% da economia do Egito era agrária, com enfoque em algodão. Desde então, o país procurou se industrializar e produzir para o mercado interno. A qualidade dos produtos, para Goldschmidt, não era das melhores, mas indicava um passo adiante.

Apesar da reforma, o professor afirma que o Egito não chegou a atingir a autossuficiência nem a independência econômica e que ainda depende, inclusive, de subsídios financeiros de potências vizinhas, caso da Arábia Saudita. Os professores apontam para uma particularidade do caso egípcio que foi a participação dos militares no setor econômico: eles adquiriram indústrias, empresas turísticas.

Politicamente, a decadência veio com a trégua com Israel, em 1979. Depois de uma série de ofensivas que enfraqueceram o Egito, a assinatura dos acordos de paz causou a expulsão do país da Liga Árabe e o corte de laços diplomáticos dos vizinhos árabes. Apesar do retorno para a Liga, o Egito não se envolveu em conflitos que eclodiram na região nessa época, como a guerra civil no Líbano (1975-1980) ou o atual conflito no Iêmen.

A decadência foi sepultada pela Primavera Árabe, que afetou o tabuleiro político enfraquecendo outros países que protagonizaram a era de ouro do pan-arabismo, como a Síria. A liderança da região fica, agora, a cargo dos exportadores de petróleo, muitas vezes aliados aos interesses dos Estados Unidos.

“O Egito era um país influente na região mesmo quando os britânicos estavam lá. Era um centro cultural. Nesse sentido, continua importante. Mas, politicamente, o Egito era muito mais influente nos países árabes durante o período Nasser”, afirma Goldschmidt.
“Hoje é um país destroçado”, diz Nasser, “as capitais que chamavam atenção do ocidente no mundo árabe –Cairo, Bagdá e Damasco– acabaram”.

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