Promessa do século passado, documento único de identificação entra em fase de testes
A plataforma permitirá reunir outros registros como título de eleitor, certidão de nascimento e de casamento, certificado de reservista e identificações de órgãos de classe.
(FOLHAPRESS) – Prometido desde o século passado e lançado oficialmente em 2018, o documento único de identificação entrou em fase de testes com servidores da Justiça Eleitoral.
A expectativa do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é disponibilizar o aplicativo até o final deste ano, mas apenas em Minas Gerais e para um número limitado de pessoas.
A promessa do chamado DNI (Documento Nacional de Identidade) é agregar diferentes dados do cidadão em um documento exclusivamente digital. Para isso, será preciso instalar o sistema no celular.
O número de identificação será o CPF. A plataforma permitirá reunir outros registros como título de eleitor, certidão de nascimento e de casamento, certificado de reservista e identificações de órgãos de classe.
“Hoje, a perspectiva que nós temos é emitir um milhão de documentos até o final de 2022. Em 2023, cinco milhões. Em 2024, o céu é o limite. Já estaremos com todo o sistema preparado e vamos ter a experiência de como tocar esse documento eletrônico”, afirma o juiz auxiliar da presidência do TSE Sandro Nunes Vieira.
O DNI também vai incluir as informações biométricas e biográficas: impressões digitais e da face, assinatura, nome completo, gênero, estado civil, cor, data de nascimento, nacionalidade, naturalidade e ocupação. Como a biometria é única para cada indivíduo, o poder público afirma que uma pessoa não poderá se passar por outra.
Em 2018, após a aprovação da lei no ano anterior, TSE e governo federal chegaram a anunciar um projeto piloto do DNI. Os testes, porém, não foram adiante por falta de recursos, travados em razão do teto de gastos.
Vieira também atribui o fracasso da iniciativa à falta de experiência da Justiça Eleitoral.
“Em 2018, o TSE não tinha expertise para entender que, para você lançar um documento para 150 milhões de brasileiros, você tem que ter uma retaguarda. Atendimento presencial, via 0800, via WhatsApp, chatbot… Atendimento técnico para a pessoa que não conseguiu validar o documento dela online. [É preciso] toda uma infraestrutura que o TSE não tinha condições de colocar à disposição do Brasil inteiro”, afirma o juiz.
O aplicativo que está sendo testado agora foi desenvolvido pelo Serpro após acordo assinado em dezembro do ano passado com o TSE. O contrato é de cinco anos. Nesse período, a empresa pública de tecnologia também ficará responsável pelo atendimento aos usuários.
Embora a coleta da biometria tenha sido interrompida por causa da pandemia, o pagamento do Auxílio Emergencial escancarou a falta de dados sobre os brasileiros e ajudou a destravar o projeto, segundo Vieira. Cerca de 120 milhões de brasileiros já tiveram a biometria coletada.
No ano passado, o TSE assinou um convênio com o governo para a ampliação da plataforma gov.br. Hoje, a base de dados do tribunal é a principal fonte do aplicativo para checar a identidade dos brasileiros. A corte não pode comercializar os dados, mas pode receber para conferir informações para empresas.
“Serviços de identificação já estão sendo prestados pelo TSE em larga escala. A forma que o governo achou de fazer a liberação dos recursos esquecidos em contas bancárias foi via gov.br. Por conta disso, nós validamos 28 milhões de brasileiros que se cadastraram”, afirma o juiz auxiliar.
O ministro Luís Roberto Barroso, que ficou à frente do TSE nos últimos dois anos, afirma que, apesar das dificuldades, o projeto avançou durante sua gestão.
Além do início da emissão do DNI e da autenticação de serviços do governo federal, ele destacou que a capacidade de armazenamento de biometrias coletadas passou de 120 milhões para 170 milhões.
“Esse sistema permite assegurar que a pessoa que comparece a determinado órgão público ou instituição privada é efetivamente quem ela diz ser. Em breve colheremos os frutos, facilitando a vida dos cidadãos e evitando fraudes”, afirmou à Folha de S.Paulo.
A ideia de unificar todos os documentos do cidadão se arrasta há anos e já foi batizada de RIC (Registro de Identificação Civil) e RCN (Registro Civil Nacional).
Eduardo Tomasevicius Filho, professor de Direito Civil da USP (Universidade de São Paulo), explica que a primeira legislação sobre o tema é de 1997.
“Começaram a tentar estabelecer um padrão para o RG em 1983, mas ele é estadual. Já a Receita Federal tinha um número que valia para o Brasil inteiro. Por isso o comércio passou a usar o CPF como base”, diz.
Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) assinou o decreto que institui a carteira de identidade nacional, que vai substituir o RG. O número único de identificação será o CPF. Hoje, uma pessoa que perde o RG e tira a segunda via em outro estado, por exemplo, recebe um número diferente.
Relator do projeto de 2017 que instituiu o documento nacional de identificação, o ex-deputado federal Julio Lopes (PP-RJ) atribui a demora à disputa pela base de dados dos brasileiros.
É por isso que, segundo ele, a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) não está abarcada pelo DNI. Também não há previsão de que o passaporte seja incluído.
“Informação é poder. Cada instituição que tinha o domínio de um cadastro quis preservar o seu, a sua informação. Como o TSE já tinha digitalizado o CPF dos brasileiros, nós aproveitamos o recurso que já tinha sido despendido”, afirma o ex-deputado.
O projeto de lei foi enviado ao Congresso pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2015 por sugestão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, à época presidente do TSE. Toffoli se tornou um dos maiores defensores públicos da ideia.
“Chegamos a identificar um cidadão com 27 CPFs diferentes, 42 RGs diferentes. Eram inúmeros casos de duplicidade. É evidente que a pessoa nessa situação quer utilizar a documentação para fraudes”, afirmou à Folha de S.Paulo.
“Os benefícios são evidentes, não só para o Estado, na medida em que você evita essa duplicidade, mas também para a iniciativa privada. Um banco, por exemplo, pode evitar um empréstimo [irregular]. É um dos melhores projetos para fins de evitar fraudes, tramoias, identificações duplas, triplas.”
Ao anunciar a parceria com o Serpro e o Ministério da Economia em fevereiro deste ano, Barroso ressaltou que o DNI também pode impedir que uma pessoa seja presa injustamente por homonímia.
Apesar disso, Tomasevicius destaca que a lista de potenciais prejuízos para o cidadão também é extensa, como o maior controle do Estado sobre o indivíduo e os crimes digitais.
“Se o Estado consegue te localizar muito facilmente, você sofre um controle exacerbado. Qual é o limite? Com um único registro fica, de fato, mais fácil a ‘caça ao cidadão’. Você aumenta o controle que potencialmente pode resultar em abusos”, diz.
“Na incidência de uma exposição de dados, você fica muito mais vulnerável. Com um único documento você consegue acessar muitas esferas de atuação de uma pessoa. Com o CPF, por exemplo, é possível abrir conta em banco digital.”
LINHA DO TEMPO
1997 -Primeira lei com menção à criação de um documento único de identidade, o RIC (Registro de Identidade Civil)
2015 -Presidente Dilma Rousseff (PT) envia projeto de lei ao Congresso que cria o documento, agora com o nome de RCN (Registro Civil Nacional)
2017 -Congresso aprova e o presidente Michel Temer (MDB) sanciona lei que cria a ICN (Identificação Civil Nacional) e o DNI (Documento Nacional de Identidade)
2018 -Governo federal e TSE lançam projeto-piloto do documento, mas não avança por falta de recursos e expertise da corte eleitoral
2021 -TSE assina contrato com o Serpro para gestão e emissão em massa do DNI
2022 -Início do projeto piloto com servidores da Justiça Eleitoral