Ex-alunos abrem o peito e contam como colégios militares goianos lidam com a homossexualidade

Repressão, brincadeiras sem graça por parte de professores e indiferença a atos de homofobia marcam o ambiente hostil a quem é LGBTQIA+

Emilly Viana Emilly Viana -
Famílias buscam o colégio militar por qualidade de ensino. Especialista aponta, porém, que aprendizado pode ser comprometido com repressão (Foto: Reprodução / Goiás Agora)

Famosos pela estrutura privilegiada e valorização da disciplina e da ordem, os colégios militares de Goiás também são cenários de “insegurança” e “desconforto”. É o que revelam ex-alunos LGBTQIA+ ao expor experiências vividas nas unidades.

Victor Hugo, de 23 anos, conta que, ao optarem por um colégio militar de Anápolis, os pais buscavam educação de qualidade em uma instituição pública. Natural de Rialma, a família via no ensino militarizado o modo mais eficaz para garantir o ingresso à faculdade, já que não tinham condições de pagar uma escola particular.

Embora o ritmo de estudos fosse mais rigoroso, o maior medo de Victor logo se tornou outro. “Ao mesmo tempo em que me entendia como homem gay, comecei a me policiar o tempo todo para não sofrer com brincadeiras ou ser repreendido pelo meu modo de sentar, de falar, de ser. Em casa o pensamento sempre foi aberto, então foi um choque”, descreve.

Ainda assim, se reprimir não foi suficiente para evitar episódios de homofobia. “Teve professor que me chamou pejorativamente no feminino e outro que fez piadinha porque os meus óculos eram diferentes, mais ‘estilosos’. Me sentia um alvo, foi doloroso”, lembra.

Outra situação denunciada por ele é o “patrulhamento” dos estudantes e relacionamentos fora da unidade. “Já aconteceu de alunos serem obrigados a sair do armário à força por terem sido vistos se relacionando com alguém longe da escola. Os pais eram chamados e aquela pessoa era confrontada contra sua vontade”, relata.

Vinícius Moreira (nome fictício), de 28 anos, que também se formou em um colégio militar de Anápolis, faz uma comparação com outras escolas que estudou. “Eu vinha de uma instituição particular muito tradicional e lá já haviam questões. Porém, no militar, há toda essa rigidez no padrão, até no olhar e na voz. É um espaço que não vê com bons olhos a delicadeza”, observa.

Ao Portal 6, ele declara ter sofrido agressões homofóbicas, inclusive, de professores e auxiliares. “A maior parte delas vinham em ‘brincadeiras’. Naquela época nenhum aluno era assumidamente gay, então ser uma pessoa que se portava diferente do considerado comum pelo colégio te colocava nesse lugar de piada”, recorda.

Ao olhar para trás, o sentimento é, sobretudo, de insegurança. “Quando penso naquela época, vejo que o militar não só não cumpria o papel de impedir a agressão, mas por vezes foi o próprio agressor”, enfatiza.

Indiferença

Arthur Saran também concluiu o Ensino Médio em colégio militar, de Goiânia. Aos 25 anos, o jovem afirma que, embora tenha mais experiências positivas que negativas, também se lembra do período pelo ambiente de indiferença em relação a casos de discriminação.

“Eu tive uma amiga que, antes de ser transferida para a minha sala, sofria com muito bullying por ser lésbica em outra turma. Em vez de conversar com os agressores, o jeito deles é mudar a pessoa de sala, como se ela fosse o problema”, pondera.

Ao longo dos anos, ele diz ter passado “ileso” pelas hostilidades por ter formando uma rede de proteção em torno de si. “Tentava ser um ótimo aluno, fui até chefe de turma. Além disso, tive muitas amigas em volta de mim que me ajudavam e professoras que me acolheram naquela época, e não me julgavam”, conta.

Para ele, a disciplina imposta por uma série de regras nem sempre era eficaz, já que era estimulada pelo medo. “Eu sentia que nós, os estudantes, éramos tratados como marginais. Acho que, de certa forma, isso até inspirou alguns dos alunos a se revoltarem, serem mais rebeldes depois fora dali”, avalia.

Ao Portal 6, a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), responsável pela gestão dos colégios, afirma que, em casos de bullying e/ou discriminação registrados nas unidades, o Comando de Ensino da Polícia Militar é acionado para tomar as devidas providências. A gestão da unidade escolar também é orientada a intervir com as ações necessárias.

A pasta diz, ainda, estar à disposição dos gestores escolares, pais e estudantes que tenham presenciado ou que tenham sido vítimas de qualquer caso de bullying ou discriminação. Além disos, alega promover lives de orientação sobre o Protocolo de Segurança Escolar e sobre as ações de combate ao bullying.

Discussão ‘fora do armário’

A psicopedagoga Leandra Ferreira avalia que o excesso de regras não é sinônimo de um aprendizado mais eficiente. “Não estou dizendo que não é importante ter limites, pois é, de fato, fundamental. Mas outra coisa é diminuir o aluno, passar por cima das individualidades dele, indo em desencontro com a transmissão do conhecimento”, pondera.

Embora munida de boa estrutura, uma instituição que é conivente com atos discriminatórios também prejudica o processo de aprendizagem. “Um aluno reprimido e inseguro vai criar uma barreira no estudo. Para desenvolver bem as habilidades, ele tem que estar aberto a se expressar, e só respeito e amparo proporcionam isso”, defende.

O maior erro dos colégios, para a psicopedagoga, é fingir que o problema não existe. “Crianças e adolescentes passam boa parte do tempo na escola, então muita coisa acontece lá. É onde surge a primeira paixão, os interesses amorosos, então precisamos ter essas discussões. Não é sobre separar banheiros, como muitos apontam, mas é antes de tudo falar de aceitação e acolhimento”, argumenta.

Outra dificuldade está no fato de que grande parte dos professores não entende que muitas piadas e brincadeiras são, na verdade, uma agressão. “O educador precisa estar nesse processo, pois é por ele que a discriminação pode começar. E se ele faz, a turma também vai se sentir autorizada a fazer”, pontua.

O Portal 6 convidou professores e ex-colaboradores de colégios militares para conversar sobre o assunto. Mesmo com a condição de terem a identidade preservada, os profissionais preferiram não dar entrevista.

Segundo Leandra Ferreira, o receio evidencia que tocar no assunto em sala de aula ainda é tabu. “Apesar dos avanços, vivemos em uma sociedade extremamente conservadora. Por mais que todo material pedagógico seja avaliado conforme a faixa etária, os professores irão evitar essa conversa para não ter problema com as famílias. Falar sobre o tema ainda pode trazer represália dos pais”, expõe.

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