Melhorar indicadores de moradia e acesso à terra é desafio para governo Lula
Problemas de infraestrutura em geral e ausência de saneamento básico dificultam acesso à terra
RANIER BRAGON
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Indicadores habitacionais no Brasil têm apresentado piora nos últimos anos, mantendo-se como um dos principais desafios ao próximo governo, de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em paralelo às responsabilidades de estados e municípios.
Em primeiro lugar, crescem as dificuldades de acesso à terra no campo e a moradias nas cidades. Mesmo quando há acesso, os problemas de infraestrutura em geral, como a proliferação de construções precárias e em áreas de risco, além da ausência de saneamento básico e de regularização, ainda são muito críticos.
No plano federal, a gestão de Jair Bolsonaro (PL) esvaziou o carro-chefe dos programas sociais direcionados à habitação, o Minha Casa, Minha Vida, e, no campo, paralisou a reforma agrária, concentrando a atuação nessa área praticamente na entrega de títulos a assentados.
Embora a coleta de dados oficiais tenha sofrido um baque com a pandemia de Covid e com o adiamento do Censo, que está sendo feito somente agora, os números mais recentes mostram piora da situação.
Folha – Como está o acesso a moradia nas cidades brasileiras?
Resposta – O problema habitacional no país se divide em duas etapas: as dificuldades de acesso à casa própria e as precárias condições de moradia de grande parte da população. De acordo com a Fundação João Pinheiro, havia, em 2019, último ano com dados oficiais, um déficit habitacional de 5,9 milhões de domicílios, ou 8% do total do país.
Embora esse percentual seja praticamente o mesmo de três anos antes, o déficit tende a ser maior atualmente –os novos números sairão após o Censo 2022–, segundo Frederico Poley Martins Ferreira, coordenador da Área de Habitação e Saneamento da Fundação João Pinheiro, “até em função de problemas do mercado de trabalho”.
“Certamente a renda das pessoas diminuiu e, assim, há maior dificuldade de pagamento de aluguel, um dos principais componentes do dado do déficit habitacional.”
O comprometimento de mais de 30% da renda com aluguel (para famílias que ganham até três salários mínimos) representa 52% de todo o déficit. Em janeiro, o rendimento médio do trabalhador atingiu o menor nível da última década, pelo menos.
Folha – Quais são os principais problemas de quem tem moradia?
Resposta – A Fundação João Pinheiro também calcula o número de habitações irregulares ou com carências de infraestrutura (esgoto, energia elétrica, coleta de lixo, entre outras). De 2016 a 2019, a cifra saltou de 23,1 milhões de unidades para 24,9 milhões no país.
Para Ferreira, é inconcebível um país no nível do Brasil ter tamanha carência de infraestrutura urbana, em especial em um momento de redução da pressão da migração campo-cidade.
Folha – Qual é a situação das favelas, especificamente?
Resposta – De 2010 a 2019, o número do que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) chama de aglomerados subnormais cresceu 59%, passando de 3,2 milhões de domicílios para 5,1 milhões. De acordo com essas projeções, um de cada quatro dessas habitações precárias fica nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro; mas a proporção é bem maior em capitais como Belém (55,5% do total de residências), Manaus (53%) e Salvador (42%).
De acordo com Socorro Leite, diretora-executiva da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, há novas ocupações surgindo devido à existência de famílias que não conseguem mais pagar aluguel ou foram despejadas.
“A falta de investimento mais massivo acaba deixando algumas dessas áreas com infraestrutura precária ou sem infraestrutura. No contexto das favelas, questões como a falta de regularização fundiária deixam ainda parte dessas famílias vulneráveis à possibilidade de despejo”, afirma.
Socorro diz ver como prioridades para a gestão federal garantir segurança à permanência da população mais pobre nas cidades, por meio da regularização fundiária, e enfrentar os problemas das moradias em área de risco, promovendo, com estados e municípios, obras, por exemplo, de contenção de encostas.
Folha – Quais são os outros reflexos do déficit habitacional e da inadequação de moradias?
Resposta – Além da pressão sobre o serviço público de saúde em regiões sem saneamento básico, há aumento da população em situação de rua. De 2016 a 2021, o número foi de 75 mil para 158 mil, segundo dados do Ministério da Cidadania analisados pelo programa Polos de Cidadania, da Universidade Federal de Minas Gerais.
O número de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo cresceu 31% durante a pandemia de Covid. Em 2021, segundo a prefeitura, havia 31.884 pessoas sem-teto na cidade, 7.540 a mais do que o registrado em 2019, quando eram 24.344 nessa situação. Em relação a 2015, o número de moradores de rua dobrou.
Folha – O governo atualmente tem programa para distribuição de moradias?
Resposta – Sim, o Casa Verde e Amarela, antigo Minha Casa, Minha Vida. O programa, porém, sofreu paralisia, em especial na faixa para as famílias mais pobres. O governo prometeu construir 2.450 unidades em 2022, com entrega em 2023, na primeira contratação de habitações subsidiadas com recursos do Orçamento a famílias com renda de até R$ 2.000 mensais.
O antecessor Minha Casa, Minha Vida, vitrine dos governos petistas, chegou a contratar mais de 500 mil unidades para a antiga faixa 1 (famílias com renda de até R$ 1.800) em um único ano. Em seu auge, no ano de 2015, o Minha Casa, Minha Vida recebeu quase R$ 30 bilhões em recursos públicos, em valores corrigidos para o primeiro semestre deste ano. Já em 2021, a despesa despencou para R$ 1,4 bilhão.
Folha – No campo, pioraram as chances de acesso à terra?
Resposta – O programa de reforma agrária, no que diz respeito à desapropriação de terras e assentamentos de famílias, começou a decair nos mandatos de Dilma Rousseff (PT), foi esvaziado no governo de Michel Temer (MDB) e chegou à paralisia sob Bolsonaro.
No atual governo, a gestão do programa foi entregue à bancada ruralista, e o foco se resume a uma maratona de entrega de títulos de propriedade aos antigos beneficiários.
O orçamento para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, e a mesma situação ocorreu com a verba discricionária total do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.
A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos FHC (PSDB) e Lula (PT), de 1995 a 2010, somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas. Segundo o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), há cerca de 120 mil famílias no campo “sob lona preta”, aguardando assentamento.
Folha – Entrega de títulos a assentados é uma medida boa ou ruim?
Resposta – Especialistas dizem não ver problemas na entrega de títulos, desde que o programa não se resuma a isso.
Uma das principais críticas é a de que a titulação, desacompanhada de medidas que promovam a infraestrutura dos assentamentos, como crédito e outros mecanismos para assegurar a permanência dos pequenos agricultores nas terras, só contribui para a posterior venda do terreno, a preços mínimos, para latifundiários ou ao agronegócio.
O discurso do governo é o de que esses certificados representam segurança jurídica para que as famílias tenham acesso a crédito e a “alforria” dos assentados em relação ao MST.
“Com Bolsonaro, a estratégia foi criar um impacto midiático com a distribuição de títulos. Mas não tem um plano real para garantir a permanência das famílias na terra. Não tem estrada, água e crédito. Houve um abandono, sobretudo naqueles assentamentos em situação mais gritante”, afirma Ronilson Costa, da Comissão Pastoral da Terra, órgão da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
O Incra diz, em linhas gerais, que o programa de reforma agrária não se resume a desapropriação e assentamentos e que inclui ações como oferta de crédito, habitação, supervisão ocupacional e titulação.
“O orçamento destinado à obtenção de terras para reforma agrária decresce desde 2012, impactado pelas restrições orçamentárias. Embora novos assentamentos tenham permeado a atuação da autarquia nas décadas passadas, o Incra passou a priorizar o desenvolvimento e a consolidação dos assentamentos.”