Crise da Americanas ameaça reputação de bilionários brasileiros

A maior evidência da perda de credibilidade da empresa e do trio foi o fato de os bancos não terem se mostrado dispostos a negociar o problema ou esperar que empresa apurasse o que chamou de "inconsistências"

Folhapress Folhapress -
Site Americanas (Foto: Reprodução)

Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto “Beto” Sicupira -os principais acionistas da Lojas Americanas- formam o trio de investidores brasileiros mais respeitado e admirado pelo “mercado”.

Juntos desde a década de 70, fazem parte da criação do mercado financeiro no Brasil, com o Banco Garantia. E são reconhecidos por terem empreendido com êxito internacionalmente, via AB InBev, Burger King e Kraft Heinz.

Ter tido sucesso inquestionável em um ambiente de negócios complicado como o do Brasil é sinal de coragem para tomar risco e de competência, diz um empresário próximo ao trio, que falou sob condição de anonimato.

Ele descreve Jorge Paulo Lemann como “brilhante”, Marcel Telles como “ótimo com pessoas” e Beto Sicupira como “superagressivo”.

A trajetória de praticamente cinco décadas, marcada pelo pioneirismo, teve suas falhas, mas nunca o mercado havia questionado tanto as práticas empresariais e a reputação dos três como agora, por causa do escândalo contábil no qual R$ 20 bilhões deixaram de ser registrados como dívidas no balanço da Americanas.

A maior evidência da perda de credibilidade da empresa e do trio foi o fato de os bancos não terem se mostrado dispostos a negociar o problema ou esperar que empresa apurasse o que chamou de “inconsistências”. Convictos de que houve fraude, credores já preparam até mesmo uma ação criminal contra o trio.

Sem crédito na praça, a Americanas entrou em recuperação judicial nesta quinta (19), mas já há alguns anos gestores de recursos levantavam dúvidas sobre suas prestações de contas.

De acordo com especialistas ouvidos, as principais pistas eram que a despesa financeira “não batia”, a Americanas não gerava caixa e quase todo ano precisava de um aumento de capital.

Mas ninguém levou essa discussão a fundo, em parte por causa da reputação e do patrimônio do trio de sócios bilionários, diz um dos gestores, que não quis se identificar. Na percepção do mercado, seria difícil que eles deixassem passar falhas graves, mas, se elas ocorressem, eles teriam recursos mais que suficientes para resolver o problema.

Lemann, 83, é carioca, filho de mãe brasileira e pai suíço e dedicou a juventude aos esportes como surf, pesca submarina e tênis -chegou a competir profissionalmente. Já há duas décadas, mora na Suíça e é vizinho do astro da modalidade, Roger Federer.

Nas viagens ao Brasil, tem se dedicado a conversar com jovens e visitar comunidades pobres assistidas por fundações que criou, Estudar e Lemann. Amigos, porém, dizem que ele não é tão simples ou humilde como parece querer transparecer, e tem um lado vaidoso. No anedotário sobre o bilionário, uma dessas vaidades é contar que teria “ensinado” o vizinho Federer a melhor seu golpe de backhand em 2016.

Influenciado por um primo que havia estudado em Harvard, Lemann –hoje o homem mais rico do Brasil– decidiu fazer também o curso de economia na universidade americana em 1957, época em que ela não recebia tantos brasileiros como hoje.

Foi lá que ele teve contato com as teses que permeiam seus negócios: a meritocracia, que consiste em promover os funcionários conforme o desempenho; e o sistema de “partnership” (associação), que oferece participação na empresa aos empregados que sobressaem.

São diretrizes que fazem sentido, mas que na prática podem acabar se transformando em pressão excessiva para os funcionários, às voltas com muitas metas. Também podem levar a uma visão de curto prazo dos negócios, o que beneficia investidores e administradores, mas pode comprometer a longevidade das empresas.

Em 1963, já de volta ao Brasil, Lemann ingressou na Invesco, uma empresa que concedia crédito, tal qual um banco comercial e que quebrou porque “emprestava mais dinheiro do que recebia”, conforme o livro “Sonho Grande”, que conta a trajetória do trio.

O empresário buscou novos sócios e, em 1967, aos 28 anos, comprou uma corretora, que transformou no Garantia, banco de investimentos que inovou e dominou o mercado a partir dos anos 70. Foi lá que conheceu os parceiros de toda vida.

Telles, 72, começou no banco em 1972 e logo foi comandar a mesa de operações. Formado em economia, tinha o perfil que o Garantia procurava: jovem, esperto e com muita ambição de ganhar dinheiro. Sicupira, 74, chegou em 1973, apresentado a Lemann por outro sócio do banco.

O fato de ambos praticarem a pesca submarina uniu os dois -anos depois, Telles também aprendeu o esporte. Rapidamente, viraram os sócios do Garantia mais próximos de Lemann e foram consolidando a parceria que dura até hoje.

Em 1982, Telles saiu do Garantia para comandar a Lojas Americanas, a primeira aquisição feita pelo banco. Em 1993, transferiu-se para a GP Investimentos, o primeiro fundo de private equity brasileiro – criado pelo trio de empresários.

Em 1994, foi a vez de Sicupira partir para liderar a recém-adquirida cervejaria Brahma. Lemann sempre se manteve na estratégia e nunca foi trabalhar nas empresas.

Em 1998, o Garantia sucumbiu: estava muito exposto a títulos de dívida externa na crise da Ásia e da Rússia. Há quem atribua a derrocada ao distanciamento dos principais sócios -naquele ano, Lemann se afastou por conta de um enfarte.

Sem credibilidade, o Garantia acabou vendido ao Credit Suisse por US$ 675 milhões. O trio não voltou mais a investir no setor financeiro e passou a construir negócios a partir de empresas mal geridas com potencial para crescer depois de uma reestruturação. Surgiu aí a marca 3G, nome do veículo criado por eles para investir em companhias.

A Brahma, em 1999, comprou a rival Antarctica, virou Ambev e em 2004 foi comprada pela belga Interbrew. Mesmo com menos ações, os brasileiros dominaram a gestão da empresa e, quatro anos depois, na tacada mais ousada do trio, ficaram com a americana Anheuser-Busch (AB), fabricante da cerveja mais vendida no mundo, a Budweiser. A AB Inbev segue líder nesse mercado global.

As investidas internacionais continuaram em 2010, com o controle mundial da rede de fast food Burger King. Em 2013, eles compraram a fabricante americana de alimentos Heinz, tendo como sócio o megainvestidor americano Warren Buffett, que Lemann conheceu em 1998, quando ambos integravam o conselho da Gillette.

Em 2015, a Heinz se uniu à Kraft, em um movimento que se revelou mal-sucedido, como já reconheceu Lemann. A 3G vêm diminuindo sua participação nesse negócio.

Nesses anos em que transformaram em realidade o sonho de liderar empresas globais, o trio ficou conhecido mundialmente e ganhou seu lugar na lista de homens mais ricos da revista Forbes. Em 2022, Lemann (R$ 72 bilhões), Telles (R$ 48 bilhões) e Sicupira (R$ 39,85 bilhões) apareceram em primeiro, terceiro e quarto lugar na lista de maiores fortunas brasileiras. Os três se dedicaram à filantropia e a ações de apoio à educação.

O trio raramente dá entrevistas e mantém um perfil discreto e sem ostentação -outra característica levada para as empresas que comandam. A ordem é sempre promover cortes de custos e despesas e retirar regalias do alto escalão, o que também acelera resultados rápidos.

Ruídos com acionistas minoritários, questionamentos sobre a transparência de empresas investidas e problemas contábeis, agora no foco, cresceram com o tempo e aparentemente esgotaram a paciência de investidores e credores.

A América Latina Logística (ALL), investida via GP, estava mal das pernas em 2016, quando foi adquirida pela Rumo –após a operação, a companhia republicou três anos de balanços. A Kraft Heinz foi questionada e multada pela SEC (a comissão de valores mobiliários americana), por má conduta contábil. Nas duas empresas, os problemas estavam na linha de fornecedores, assim como na Americanas.

A notícia de que há problemas no balanço da varejista veio meses depois de uma reestruturação societária que levou o trio a sair do controle, reduzindo a fatia para 30%. Os três eram os controladores durante praticamente todo o período que o escândalo contábil aconteceu, e ainda têm maioria no conselho da Americanas -Sicupira está no colegiado.

O que se diz entre assessores financeiros é que ninguém fazia nada na Americanas sem consultar o trio.

Os bancos credores querem que os bilionários se responsabilizem pela crise e coloquem entre R$ 10 bilhões e R$ 15 bilhões para salvar a empresa. Em resposta, o trio acenou com R$ 6 bilhões e não mostrou pressa. Na recuperação judicial, se comprometeram a injetar recursos na companhia para que ela continue funcionando, mas não especificaram quanto.

A questão é que, pelo que se sabe até aqui, o principal efeito da manobra contábil foi inflar os lucros da empresa. Com esse artifício, a Americanas entregou resultados apenas medianos; sem ele, nem isso.

Investidores agora se perguntam se eles vão “rasgar dinheiro” injetando recursos novos na empresa para manter a reputação ou o legado, o que seria o principal sinal da viabilidade da Americanas. O desfecho do caso será acompanhado de perto também pelos investidores internacionais.

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