Agenda conservadora de Meloni atinge casais homossexuais na Itália

Duas ações promovidas pelo governo afastaram a possibilidade de incluir em documentos de identificação a filiação de crianças que têm genitores do mesmo sexo

Folhapress Folhapress -
Manifestantes protestaram contra medida de Giorgia Meloni. (Foto: Reprodução/Twitter)

MICHELLE OLIVEIRA

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Não foi uma boa semana na Itália para famílias formadas por duas mães ou dois pais.

Duas ações promovidas pelo governo de Giorgia Meloni, de ultradireita, afastaram a possibilidade de incluir em documentos de identificação a filiação de crianças que têm genitores do mesmo sexo. Um movimento que faz parte da agenda conservadora do governo, segundo essas famílias, que se encontram envoltas em incertezas.

Na segunda (13), o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, de centro-esquerda, anunciou que, por ordem do Ministério do Interior, os cartórios estavam impedidos de registrar em certidões os nomes de duas mães que tenham tido uma criança por meio de fertilização assistida com parto na Itália ou de dois pais de uma criança nascida de uma gestação de substituição (no Brasil, conhecida como barriga de aluguel), ambos os casos possíveis somente no exterior.

Apesar de a Justiça italiana não considerar a homoparentalidade ilegítima, as duas situações que permitem aos casais do mesmo sexo de terem filhos são vetadas na Itália. A fertilização assistida é consentida somente a casais heterossexuais, enquanto a gestação de substituição é ilegal para todos.

Diante da ausência de uma lei específica sobre o tema, alguns prefeitos como o de Milão passaram a permitir, nos últimos anos, a emissão de certificados com a filiação de genitores do mesmo sexo. Ciente disso, o governo formalizou uma orientação para que as prefeituras interrompessem a prática, citando a jurisprudência de uma decisão ocorrida em dezembro.

A medida, que tem validade nacional, determina que apenas o genitor ligado geneticamente à criança, nos caso dos homens, ou a mulher que tenha dado à luz, no caso das mães, podem ter o nome na certidão, cabendo ao outro a possibilidade de adoção, o que força essas famílias a recorrerem à Justiça, em processo custoso e lento.

Neste sábado (18), centenas de pessoas, incluindo líderes políticos e integrantes de movimentos LGBTQIA+, protestaram contra a medida na praça do Scala, em Milão.

Na terça-feira (14), foi a vez da comissão do Senado que analisa propostas de leis da União Europeia derrubar o projeto de um certificado europeu de filiação, para assegurar os direitos das crianças entre os países.

O documento, que precisa da unanimidade dos 27 membros, prevê que uma filiação registrada em um país do bloco seja reconhecida automaticamente nos demais, seja ela de casais do mesmo sexo ou não. O veto foi decidido por uma maioria de votos governistas, a partir de uma resolução apresentada por um senador do Irmãos da Itália, mesmo partido de Meloni.

Apesar de o certificado europeu não modificar regras nacionais vigentes, integrantes do governo argumentaram que isso significaria uma imposição. “Bruxelas não pode nos impor o conceito de família. Uma criança precisa de uma mãe e de um pai. Uma criança não pode ser comprada ou alugada”, disse o vice-premiê Matteo Salvini (Liga).

O tema ocupou o centro do debate político, com a oposição acusando o governo de hostilidade contra os direitos LGBTQ+. “É um ataque muito duro aos direitos das crianças das famílias homoparentais”, disse a nova líder do Partido Democrático, Elly Schlein, que anunciou a sua participação em uma manifestação prevista para sábado (18), em Milão.

Líder do partido mais votado em setembro, Meloni foi eleita com um discurso contra o “lobby LGBT” e a favor da “família natural”. As ações desta semana são consideradas a primeira investida concreta contra direitos civis e se juntam ao projeto de lei, apresentado semanas atrás, que criminaliza a gestação de substituição realizada também no exterior.

Mesmo antes da chegada da ultradireita ao poder, a Itália já estava defasada em relação aos direitos LGBTQ+. Segundo o ranking da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Interssexuais (Ilga), o país tinha, em 2022, 25% dos direitos alcançados, ocupando o 33º lugar entre 49 países europeus.

A união civil é legalizada desde 2016, mas a adoção conjunta é vetada. Em 2021, um projeto de lei que criminalizava a homotransfobia foi rejeitado pelo Parlamento.

“A situação piorou agora. Antes era um cenário de imobilismo, agora há uma ferocidade. Certamente a abordagem é alinhar-se a Viktor Orbán [primeiro-ministro da Hungria]”, diz Angela Diomede, representante em Milão da Famiglie Arcobaleno, associação italiana de genitores homossexuais.

Mãe com outra mãe de uma menina de 6 anos, que já tem o documento com os nomes de ambas, Diomede conta que os últimos dias foram de medo e preocupação. Ainda não se sabe se a decisão imposta pelo Ministério do Interior pode ter efeito retroativo, anulando registros já emitidos. Mas famílias que planejavam pedi-lo entraram em uma zona ainda mais cinzenta.

“As pessoas se perguntam: ‘Amanhã nasce meu filho e minha companheira não será reconhecida. Terei que fazer tudo sozinha, ser o único responsável na escola, na hora de vacinar? E se eu morro no parto, o que acontece?'”, conta Diomede. “A sociedade civil nos aceita como somos, mas ter um papel é importante do ponto de vista legal, como diante de uma hospitalização ou morte.”

A associação apresentou uma proposta de lei, em junho passado, antes de o novo governo assumir, com medidas para a igualdade de direitos. “Isso não saiu do lugar e sabemos que é muito difícil que ela seja aprovada agora. Estamos pensando em outras soluções de tutela”, diz Francesca Rupalti, vice-presidente da Rete Lenford, grupo de advogados especializado no tema e coautor da proposta. “É desolador. Em vez de avançarmos, estamos voltando para trás.”

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